Recentemente, estive em mais de um evento médico e pude observar de perto como anda a atual dinâmica entre médicos e indústria. A experiência rendeu novas histórias e perspectivas, que compartilho aqui de forma anônima, com lugares e contextos também modificados.
Tudo começou em início de outubro, quando participei de um evento da minha especialidade. Fiquei em um hotel agradável, bem localizado, onde me hospedei com outros palestrantes. Havia, é verdade, opções mais sofisticadas — uma delas oferecia apartamentos mais modernos e um rooftop incrível, com piscina ao ar livre, academia de alta performance e todas as comodidades que se espera de um hotel 5 estrelas. Nela, estavam hospedados vários médicos residentes e recém-formados especialistas, incluindo alguns do meu próprio serviço. Todos custeados pela indústria da saúde.
As noites, para eles, eram também de alta performance. Todos os dias havia um luau ou outro evento social patrocinado, e, como resultado, a presença nas atividades do congresso propriamente dito foi, cada dia mais, rareando. Embora tivessem hospedagem e inscrições cobertas, o evento científico, com centenas de médicos inscritos, acabou ficando em segundo plano:
Um colega que não compareceu ao congresso justificou ausência mencionando o alto valor dos ingressos e o fato de não ter conseguido nenhum patrocínio. Isto se conecta com
outra de nossas recentes postagens.
Duas semanas depois, acompanhei meu companheiro a outro evento. Enquanto ele palestrava, fiquei numa sala de apoio aguardando para entregar um pen drive necessário para outra atividade. Essa sala foi compartilhada com um representante da indústria, que aproveitou para realizar reunião virtual. A conversa apresentava truncamentos: fluía melhor na minha presença apenas, sabe-se lá porque razão. Toda vez que aproximavam-se congressistas, a pessoa mais escutava quem estava do outro lado do que falava...
Neste trecho*, indivíduo do outro lado parecia não confiar em seu
speaker. É tranquilizado com expressões do tipo "validamos tudo". Fica a forte impressão de que controlam através de plataforma onde insere-se as apresentações e, somente dali, são oferecidas ao público-alvo. Essa questão da influência no conteúdos e, consequentemente, na grade dos eventos médicos, não é exatamente nova: a Folha de São Paulo, ainda em 2011, publicou matéria cujo título era:
Médicos ”loteiam” eventos para a indústria.
Algum tempo depois, começam a discutir um novo produto de potencial aproveitamento por mais de uma especialidade médica. Mas falam em tentar "pegar pneumologistas" da região, pois "sabem que farão 2-3 eventos até o final do ano".
Escute aqui*.
Por fim, passam a discutir o que parece um treinamento institucional para certo "pacote" no qual está inserido produto da empresa. Já teriam acertado com a operadora e o hospital, e treinariam eles próprios os médicos em perspectiva de "protocolo cego".
Aqui está*.
* Voz alterada en Voice Changer. Há áudio original com duração de quase 10 minutos.
Mais adiante, conversando sobre as atividades sociais patrocinadas com um amigo que compartilha preocupação com os impactos dessas práticas na qualidade e nos custos assistenciais, ele apontou, após identificarmos que está muito natural e que quase todo colega frequenta:
Realmente dá vontade [de jogar a toalha]... Também gostamos, e muito, de socializar...
Talvez reflita exatamente o que a indústria quer de nós em cenário onde são poucos que efetivamente cruzam limites éticos além de pequenos lapsos. A tal maioria, no entanto, garante, por razões óbvias, a tão eficiente 'Cortina de Fumaça'.
Se você tem experiências semelhantes e deseja discussão impessoal e, portanto, anônima, nos procure. Teremos o maior prazer em divulgar.