quinta-feira, agosto 23, 2012

Minhas experiências com propagandistas

Durante muito tempo eu vivenciei uma situação conflitiva em relação a propagandistas de laboratórios. Ao mesmo tempo em que achava uma chatice recebê-los em meu consultório, para que recitassem vantagens dos medicamentos que estavam divulgando, pensava que eles estavam trabalhando para ganhar o sustento de suas famílias, e que mereciam ser respeitados enquanto trabalhadores. Muitas vezes eu recebia as amostras grátis de medicamentos que eles deixavam em meu consultório e as entregava para algum paciente que as usava. Nunca recebi nenhuma vantagem de laboratório para ir a congresso ou jantares pagos pela indústria farmacêutica.

Minha posição em relação aos propagandistas de laboratórios mudou quando a “Lei do genéricos” foi promulgada e seus patrões começaram a pressionar os médicos para que não receitassem os medicamentos pelo nome de seus componentes químicos, como seria o certo para ajudar a referida lei se consolidar. Insistiam com os médicos que mantivessem apenas os nomes comerciais deles e até usassem selos pagos por eles nos receituários, dizendo “não aceito a troca desta medicação por genéricos”. Foi quando resolvi escrever o artigo “A ética dos médicos e a Lei dos genéricos”, reproduzido no capítulo anterior.

Depois que o artigo foi publicado os próprios propagandistas de laboratórios deixaram de procurar meu consultório, o que foi um alívio para mim, que deixei de ter que aturar suas visitas, mesmo porque fazia isso pelo fato deles serem trabalhadores, como já disse antes. Depois de mais de uma década sem ter que me preocupar com tais personagens, em fevereiro de 2010 tive um contratempo com um deles através das páginas do jornal Folha de São Paulo.

Em 14 de fevereiro de 2010 aquele jornal publicou um vigoroso Editorial intitulado “Ética sem desconto”, com o seguinte conteúdo:

“Merece aplauso a resolução do Conselho Federal de Medicina que veda a participação de médicos em promoções de medicamentos por meio de cupons e cartões de desconto. A promiscuidade de interesses entre laboratórios farmacêuticos e profissionais da saúde está em pauta por toda parte. É saudável normatizá-la também no Brasil. Os argumentos do CFM para proibir a prática são certeiros. Em primeiro lugar, o estratagema de solicitar a médicos o preenchimento de formulários com dados acerca de seus pacientes e da prescrição fere o sigilo que protege a relação entre profissional e cliente. Com tal expediente, terceiros - as empresas - ganham acesso a informações clínicas que não deveriam sair do consultório.

Além disso, o médico se torna cúmplice de um processo de "fidelização" que só interessa aos laboratórios. O procedimento pode induzir o uso continuado do remédio sem controle periódico, ou dificultar a troca do medicamento em promoção por outro princípio ativo ou fabricante. Ainda que o profissional não obtenha vantagens pessoais, sempre haverá suspeitas. Se o laboratório tem condições de oferecer descontos significativos para alguns clientes, deveria fazê-lo no mercado propriamente dito. Concorrência direta ainda constitui a forma mais eficiente e transparente de conquistar clientes; transformar médicos em atravessadores é na realidade uma forma de burlá-la”.

Quando li o referido editorial enviei uma carta para o “Painel do Leitor”, um espaço nobre do jornal, dedicado a expor a opinião de seus leitores. Minha carta foi publicada naquele espaço no dia dezesseis de fevereiro de 2010 e teve o seguinte conteúdo:

"No editorial "Ética sem desconto”, o jornal se posicionou a favor de decisão do Conselho Federal de Medicina que proibiu a participação de médicos em promoções de medicamentos por meio de cupons e cartões de descontos. Como médico, vou além, defendendo que se impeça a atividade dos propagandistas de laboratórios farmacêuticos em consultórios médicos. Com o pretexto de "promover atualização científica" para os profissionais, tais figuras buscam é propor negócios, o que não cabe na nossa prática profissional. Com o acesso que todo médico tem à internet nos dias atuais, não se justifica a argumentação acima, pois a nossa atualização científica prescinde da presença dessas pessoas. Há mais de doze anos não recebo propagandistas de laboratórios em meu consultório. E garanto que não fazem nenhuma falta".

No entanto, fui surpreendido no dia seguinte, por uma carta publicada no mesmo “Painel do leitor” da Folha, de autoria de um propagandista de laboratório chamado Francisco Stanguini, residente em São Caetano do Sul. Sua carta foi de uma agressividade incomum, como veremos a seguir:

“Foi com muita tristeza que li a carta do médico José Elias Aiex Neto sobre propagandistas de laboratório (“Painel do Leitor", ontem). Ele afirma não receber propaganda médica há doze anos e garante que não faz nenhuma falta. Certamente ele deve estar bem desatualizado com a prescrição de medicamentos. A função de um propagandista é levar informações técnicas e científicas atualizadas sobre produtos e trabalhos que não são publicados na internet. Além disso, tem a função social de atender pedidos de médicos com amostras grátis para ajudar pacientes mais necessitados. Lembro ao doutor que a função de propagandista médico é regulamentada e existe há quase uma década, com sindicato atuante em todo o Brasil."

Apesar de ter sido agredido por uma pessoa que nem me conhecia e que levantou aleivosias a respeito da minha capacidade de estar atualizado dentro da medicina, penso que valeu a pena a polêmica, pois nos dias subseqüentes a Folha de São Paulo publicou outras cartas de médicos que se posicionaram contra o propagandista em tela. Uma das mais contundentes foi a de José Butori Lopes de Faria, professor titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que assim se pronunciou, no dia 18 de fevereiro de 2010:

"A carta do senhor Francisco Stanguini possui incorreções que não devem passar despercebidas. A primeira incorreção é dizer que o propagandista de laboratório promove atualização científica. Atualização científica é obtida através de trabalhos científicos publicados em revistas especializadas ou apresentados em congressos. A segunda incorreção é dizer que a "amostra grátis" tem a função social de ajudar pacientes necessitados. A "amostra grátis" nada mais é do que uma forma de propaganda que tem o intuito de vender a medicação. Mais especificamente: fidelizar o médico e o paciente àquela medicação. Àqueles que desejarem maiores informações sobre a forma de atuação da propaganda da indústria farmacêutica recomendo a leitura do excelente livro: "The Truth about the Drug Companies" ("A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos", recentemente traduzido para o português pela editora Record), da doutora Márcia Angell, ex-editora de uma das revistas médicas de maior prestígio: "The New England Journal of Medicine".

De qualquer maneira, o episódio mostrou que, quando os médicos se posicionam contra os interesses da indústria farmacêutica, seus representantes, os propagandistas de medicamentos, não hesitam em atacar os médicos, demonstrando o que representamos para eles: prescritores de seus remédios e garantidores dos lucros de suas empresas. Enquanto fazemos o jogo deles somos maravilhosos. Quando denunciamos o que existe por trás de suas atividades atacam até o nosso conceito profissional de maneira inconseqüente.

O que nos entristece é ver os argumentos que os representantes da indústria farmacêutica usam para desqualificar os médicos, como se nós não fôssemos capazes de nos manter atualizados, e que dependemos deles para isso. Mas o que mais nos entristece ainda, de forma pungente, é ver a categoria profissional de médicos ter ainda em seu seio grande parcela de membros que aceitam tal situação, inclusive sem se darem conta do quanto são desmoralizados. Tal desmoralização e feita por pessoas leigas, que não sabem nada de saúde, pois não fizeram nenhum curso superior na área, mas que trazem apenas o apelo da gorjeta que seus patrões das multinacionais lhes entregam para darem aos médicos.

* Trecho do capítulo “Da interferência dos propagandistas de laboratórios para consolidar a política de seus patrões”, do livro “Psiquiatria sem alma” (Travessa dos Editores), do psiquiatra José Elias Aiex Neto.

2 comentários:

  1. Parabéns Doutor! Vendedores são pessoas sem escrúpulos, não respeitam os pacientes ,que estão doente em busca de alivio de suas dores , já cheguei a esperar vendedor ser atendido e ficar na sala do médico por 30 minutos.Falta de ética profissional,são estes vendedores que estão atrasados sem conhecimento, mais uma vez Parabéns!

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  2. Parabéns pela matéria. Já fui vendedor de medicamentos de um grande laboratório. Pedi demissão por não concordar com essa prática. Hoje trabalho naquilo que me completa e sei que o resultado do meu trabalho é a certeza em ajudar ao próximo. Dorme com a consciência tranquila.

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