domingo, junho 09, 2024

Confiar cegamente em biomarcadores para poupar boleiros é ciência de boa qualidade?

Ah, o dilema dos técnicos sobre poupar ou não os jogadores! Maurício Carvalho, o jornalista esportivo, trouxe à tona essa discussão numa participação recente na rádio. Parecia estar num jogo de pingue-pongue entre dar crédito ao que gostaria, variáveis como idade, esforço acumulado e medidas subjetivas como percepção de fadiga ou de excesso, e render-se à "ciência", representada por biomarcadores como a famosa CK.

É engraçado como muitas vezes associamos ciência apenas aos tubos de ensaio e aos laboratórios, quando na verdade, é um complexo processo que vai muito além disso. E por vezes não passa por isso. 

Apesar de biomarcadores como a CK definitivamente fazerem parte da fisiologia da performance atlética humana, e de não ser pouco o conhecimento que possuímos deste cenário e seus mecanismos, a ponto de gerar lindas figuras complexas como esta abaixo, a predição individual de lesões em jogadores de futebol ainda é mais desafio, e arte, do que uma realidade a partir de alguma bala de prata


Atletas são como carros de corrida, sujeitos a fadiga e perda de performance conforme a corrida o número de corridas ou conforme a própria corrida avança. Quando o equilíbrio entre o estresse e a recuperação é desproporcional, pensa-se que pode ocorrer "overreaching" e possivelmente "overtraining". Embora a CK reflita o esforço muscular da exigência anterior, sua utilização como ferramenta diagnóstica de risco é ainda discutível, como apontam inúmeras análises.

É bastante comum na Medicina "uma coisa ser uma coisa, outra coisa ser outra coisa". Autores deste artigo de 2004, poe exemplo, não negam a fisiopatologia, mas apontam que "achados inconsistentes e a incapacidade de distinguir a fadiga aguda resultante do treinamento intensificado de "overreaching" ou "overtraining" não apoiam o uso da maioria dos marcadores bioquímicos como ferramentas diagnósticas no esporte". Nesse outro de 2016, com brasileiros envolvidos, sinalizam que "biomarcadores de inflamação, dano muscular e estresse oxidativo após exercícios de alta intensidade foram descritos anteriormente; no entanto, é necessária uma maior compreensão do seu papel no período de recuperação pós-exercício".

Em 2002, com o título Diagnosis of Overtraining - What Tools Do We Have?, os autores dizem que "pode-se especular que o aumento da atividade da CK poderia ser usado para prevenir lesões... Um diagnóstico definitivo de overtraining, entretanto, utilizando esses parâmetros, não é possível [a luz da evidência disponível]". Segundo eles, as únicas ferramentas disponíveis para diagnosticar overtraining seriam subjetivas, como a sensação de “pernas pesadas” e relatos de distúrbios do sono.

Em revisão mais recente, apontam que:

"Embora os biomarcadores tenham sido estudados no desempenho humano, há uso limitado para determinar estados de lesão (tanto risco de lesão, gravidade da lesão e recuperação da lesão)"

Sugerem ainda que precisamos conhecer mais os intervalos de referência específicos para atletas e que não há comprovação de utilidade na predição de fraturas de estresse ou de lesões ligamentares.

Nada disto deveria surpreender. Uma das minhas especialidades, Medicina Intensiva, é também rica em mecanismos e  discussões sobre biomarcadores. Sabemos que quanto mais os nossos intensivistas pesquisadores os estudam, mais dúvidas geralmente têm. Um exemplo aqui.

Se Maurício, ao trazer essa discussão, sugestiona, sem nem saber bem porquê, uma abordagem mais científica do tema, reconhecendo a necessidade de considerar diversas informações, incluindo o contexto do próximo jogo, para tomar decisões adequadas sobre a gestão do grupo de atletas. Por tudo que se conhece sobre biomarcadores em diversas áreas da Medicina, não deveria surpreender o fato de não serem determinísticos. No máximo, moldariam probabilidades. Devem ser, pelo menos, analisados em conjunto com informações outras - no caso do futebol profissional, a importância do próximo confronto e a condição do atleta do lado e que eventualmente tem um biomarcador aceitável, mas tudo para estar "no limite".

Se eu ou o ChatGPT perdemos alguma referência que modifique essas conclusões, por favor compartilhe. Assim traz o ChatGPT:




Ah, a vastidão da internet, onde as ideias brotam como grama em campo de futebol! Sobram na internet referências a este e outros vários biomarcadores para aplicação no esporte de alto desempenho. É tentador mergulhar nesse mar de informações e se perder nas narrativas promissoras sobre biomarcadores e desempenho esportivo. Qualquer um poderia construir argumentos convincentes sobre seu potencial revolucionário. No entanto, como diz o ditado, a prova está no pudim - ou, no caso, nos estudos científicos revisados. Por mais que haja plausibilidade, se o interesse for boa ciência, será preciso mostrar algum estudo científico que tenha passado por nossas eventualmente breves ou limitadas revisões.  

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