terça-feira, outubro 16, 2012

O caso Truvada e a indústria farmacêutica

No último dia 17 de julho de 2012, a Folha de São Paulo deu em sua capa a seguinte notícia: “EUA aprovam remédio que evita infecção por vírus HIV”. É preciso destrinchar o que está por trás desta notícia, aparentemente bem dada. O FDA (“US Food and Drug Administration”), o equivalente a nossa Anvisa, que aprovou o uso do medicamento para “prevenção”, não é um órgão isento da influência da indústria farmacêutica. Muito pelo contrário. Apesar de regulado pelo governo americano, aceita indicação de pessoas comprometidas, o que a priori não as faz piores pesquisadores, mas para muitos seria um obstáculo para participar de agências deste porte.

O US Preventive Service Task Force (USPSTF), agência responsável por avaliar quais exames devem ser realizados nos famosos “check ups” e que recentemente passou a não recomendar mamografia para mulheres sem risco abaixo de 50 anos ou PSA para homens de qualquer idade, igualmente sem riscos ou sintomas, é mais isenta e criteriosa, preferindo incluir epidemiologistas do que especialistas, além de recusar a participação de pesquisadores com vínculo com a indústria farmacêutica ou da “prevenção”. No caso do Truvada, medicamento que combina Tenofovir/Emtricitabine e é usado há alguns anos para o tratamento da SIDA ou HIV positivo (incluindo HIV+ em casais sorodiscordantes), houve grande debate no FDA. Foi um dos mais longos da história da agência tendo durado mais de 12 horas. A aprovação se baseou em essencialmente dois estudos, um intitulado “Antiretroviral Prophylaxis for HIV Prevention in Heterosexual Men and Women” e o segundo “Preexposure Chemoprophylaxis for HIV Prevention in Men Who Have Sex with Men”, ambos publicados no New England Journal of Medicine, revista de grande reputação.

Por 19 a 3, o comitê do FDA recomendou o uso do Truvada para o HIV negativo de casais sorodiscordantes, ou seja, em risco, e por 12 a 8 votou pela aprovação de “outros indivíduos em risco de pegar HIV através da atividade sexual”, sem discriminar quem são estas pessoas (http://www.natap.org/2012/HIV/051112_01.htm). O Annals of Internal Medicine, no dia 22 de julho, publicou dois artigos de integrantes do FDA (http://annals.org/article.aspx?articleid=1221644). Lauren Wood justifica porque votou não e em seu formulário de “conflitos de interesse com a indústria farmacêutica” nada consta (https://www.acponline.org/authors/conflictFormServlet/M12-1788/ICMJE/Wood-86175.pdf). Já Judith Feinberg, que votou “sim”, tem um antigo relacionamento com tal indústria (https://www.acponline.org/authors/conflictFormServlet/M12-1742/ICMJE/Feinberg-2862.pdf). Isso já seria justificativa para ao menos desconfiar da aprovação de um medicamento que não foi devidamente testado para este fim, já que em ambos os estudos havia a recomendação de manter o uso do preservativo. Porém, o Truvada é patenteado pela Gilead que vem a ser a empresa que vendeu os royalities do Tamiflu para a Roche e que teve como CEO Donald Rumsfeld de 1997 a 2001, período em que esteve fora do governo americano ocupado por outras “guerras” (http://www.gilead.com/pr_933190157).

Ou seja, para além da discussão da influência da indústria farmacêutica nas condutas e aprovações, está claro que o número necessário para tratar (NNT) com Truvada é extremamente alto para evitar uma infecção e o numero de pessoas que se infectarão caso não usem preservativo mas apenas com, e talvez por causa do, Truvada é muito mais alto, sendo que nas pesquisas usadas como referência apenas se infectou quem usou Truvada ou placebo mas não preservativo, ou este falhou. Isso sem contar nos efeitos colaterais como diarreia, problemas renais e osteopenia. Trata-se de um desserviço a população. A lição que fica é que declarar conflito de interesse não isenta o pesquisador de tal interesse.

Publicado em Blog do Gustavo Gusso, médico de família, mestre em medicina de família pela Western Ontario University e professor da disciplina de Clinica Geral da Universidade de São Paulo.

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