quinta-feira, agosto 08, 2013

A promiscuidade entre a indústria e a medicina: o exemplo da Nestlé e da Pediatria no Brasil

Reprodução de texto de Daniel Becker, médico pediatra

"Imaginem a cena: milhares de adultos fazendo filas para comer papinhas de bebê requentadas em réchauds de aço inox. Médicos se acotovelando para devorar leitinhos infantis açucarados e biscoitos de aveia e mel. Centenas de respeitáveis profissionais ansiosos para responder um joguinho de perguntas e ganhar bichinhos de pelúcia; jogando dadinhos gigantes para ganhar picolés de graça.

Estas cenas não pertencem a alguma comédia dos Trapalhões ou a um pesadelo de pais esgotados. São reais e colocam, de forma muito eloqüente – e caricatural, neste caso – uma faceta pouco conhecida da medicina: a relação entre indústria farmacêutica e médicos.

Existem muitas restrições que limitam a propaganda de remédios diretamente para o consumidor. Portanto, o médico, que prescreve a droga, acaba sendo o alvo preferencial da indústria. Há várias formas de cooptar a “opinião cientifica” de médicos. E os alvos mais valiosos são aqueles que se encontram em posição de influenciar decisões que gerem mais vendas – seja por influência no público diretamente, no governo, na mídia ou – muito importante – em outros médicos.

A indústria pode, por exemplo, financiar estudos “científicos” sobre seus produtos, mascarando ou alterando resultados; manipulando estatísticas e mesmo, estratégia mais comum, trazendo a público apenas os que deram resultados favoráveis (os que mostram que o remédio não funcionou vão para a gaveta). Médicos recebem dinheiro (de forma direta, mas velada) da indústrias para promover direta ou indiretamente uma droga; médicos são seduzidos por favores como passagens para congresso, viagens e estadias pagas em hotéis caros, aparelhos de todo tipo, comissões, pagamentos para publicar artigos, dar palestras que mostram como é bom tal ou tal remédio… enfim, são muitas as estratégias.

Uma das mais criativas é a da Nestlé Brasil. A maior indústria de alimentos infantis do planeta que escolheu como estratégia – extremamente inteligente – influenciar nossos pediatras. Ora, pediatras influenciam mães e pais, com autoridade de quem cuida da saúde de nossos filhos! Quer melhor que isso para vender? 

Infelizmente, em nosso pais e em muitos outros, o desmame precoce ainda é uma triste realidade. E muitas vezes ocorre devido ao conselho de profissionais de saúde, entre eles, pediatras e obstetras. Maternidades são conhecidas pela prática de oferecer complementos para recém nascidos, muitas vezes desnecessariamente, à revelia das famílias. A Sociedade Brasileira de Pediatria faz um belo trabalho de defesa e promoção do Aleitamento Materno – recentemente, por exemplo, pressionando pela aprovação da licença de 6 meses. Mas por outro lado, tudo, literalmente tudo que a SBP faz é patrocinado pela Nestlé. A indústria colou de tal forma a sua marca à SBP que chega a ser bizarro. Todas as publicações da Sociedade de Pediatria vem com o logo “Nestlé Nutrition”. Cursos, atualizações, manuais, correspondência… tudo. É muita simpatia. A Nestlé está de tal maneira identificada com a pediatria brasileira, que causa fascínio em todos os que vem a conhecer este “case” de marketing. E é muita ambigüidade: por um lado lutar pela amamentação e por outro lado se apoiar inteiramente na indústria que historicamente foi a pior inimiga do leite materno, e cujos produtos, que deveriam ser uma espécie de reserva técnica para casos excepcionais, são propagandeados diariamente para médicos (aliás, os de outras indústrias também).

E aí… semana passada passei um dia no Curso Nestlé de Atualização em Pediatria, oferecido (sem custos) anualmente pela empresa e freqüentado por milhares de pediatras de todo o pais. A edição 2012 foi no Rio, e fui lá para assistir uma aula específica.

O que vi era difícil de acreditar. Um pátio gigantesco, no Riocentro. Milhares de médicos, a maior parte acima de seus 40 anos, se acotovelavam para participar das promoções da Nestlé. Eram “quizes” de perguntas (quase todas relacionadas direta ou indiretamente a produtos da empresa) para ganhar… bichinhos de pelúcia; joguinhos da memória infantis sobre as papinhas Nestlé, para ganhar pingentinhos; joguinhos de dados gigantes para ganhar picolés; fotos com logo de iogurte para colocar no Facebook; videogames com símbolos de produtos para ganhar mais brindes infantis. Nos stands servia-se chocolatinhos, leitinhos, Ninho Soleil, Chambinhos, biscoitos, sorvetinhos e pasmem: papinhas Nestlé. Em réchauds de aço inox, servidos por mocinhas em traje de chef. Em todas as estações, centenas de pediatras se acotovelavam para participar, provar papinhas e ganhar brindes infantis. Isso em meio a propagandas gigantescas de todos os produtos da empresa, em especial os leites para bebês.

Ora, uma coisa é propaganda lúdica, bem humorada. Mas o que vi ali foi um show de infantilização simplesmente inacreditável. Uma empresa se propondo a tratar pediatras como crianças e pediatras assumindo esse papel de forma caricatural. Assim fica muito fácil imaginar como a Nestlé se inscreve no imaginário destes profissionais. Como eles de forma inconsciente transformam a empresa numa “Grande Mãe” que os ama, e portanto, merece amor filial. Uma mistura genial de marketing e psicanálise, que para alguém que conseguia ver este cenário um pouco “do lado de fora”, parecia um verdadeiro show de horror."

O autor criou espaço no Facebook para ilustrar um pouco o que descreveu:
http://www.facebook.com/media/set/?set=a.331214660302932.73078.150013085089758&type=3

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