Quase todos os médicos recebem representantes dos laboratórios. São pessoas muito gentis, pacientes – às vezes, nos esperam por horas -, elegantes, inteligentes e parecem poder conversar sobre qualquer coisa. Também são bem treinados e aí começam os problemas.
Explicarei. Mas antes uma breve história. Há poucos meses encontrei um representante que me conheceu quando eu era guri, está octagenário e, segundo familiares, com problemas de memória. Porém, ao avistar-me, sabedor que eu era médico, ele recitou uma fala de 3 minutos contínuos, no qual falou das vantagens de um hepatoprotetor, que na verdade funciona como placebo, sem evidência de eficácia. O discurso estava intacto, apesar da idade, nasceu na década 70.
O treinamento dos representantes segue parecido. Ele é feito para atender médicos medíocres. O que, de alguma forma, traduz a visão que o marketing da indústria tem dos médicos. O material promocional é de qualidade ímpar: o melhor papel, fotos excelentes, gráficos claríssimos. Porém, o conteúdo é enviesado. Dados pinçados em estudos duvidosos, comparações de resultados entre estudos de diferente design, extrapolações espúrias. Quando a medicação tem menos eficácia acentua-se a diminuição de efeitos colaterais e omite-se a eficácia. Além dos comentários sobre os principais problemas das intervenções concorrentes. Na maioria das vezes, os representantes não sabem com profundidade sobre o que estão falando, repetem o treinamento. Não têm consciência que são cumplices de tortura de dados.
Há poucos dias, um representante falou-me da vantagem de uma apresentação de 20mg em relação a de 30mg. A vantagem era que a de 30 custava 50% mais. Outro, da vantagem de uma apresentação com 50% mais comprimidos e que apresentação da concorrência era apenas 30% mais barata. Quando comento que o preço unitário do comprimido era o mesmo, ele olhou-me com um ar de estranheza. Além disso, a indústria está nos propondo que sejamos garotos propaganda das farmácias conveniadas e dos programas de fidelidade. Além de medíocres, talvez sejamos baratos, do ponto de vista do RH da indústria.
Com frequência somos convidados para uma janta, na qual escutamos um palestrante falar sobre alguma medicação. Na maioria das vezes, ele faz uma apresentação acrítica, que já vem pronta do laboratório, que não raro, apresenta os mesmos vieses do material dos representantes. Mostrando claramente que o laboratório confia tanto na mediocridade do speaker, como na dos ouvintes. Sim, após a palestra, a confraternização entre os colegas e os representantes é ótima.
Somos nós médicos de fato medíocres e os laboratórios adaptaram-se a isso? Ou seriam eles que nos vêm a sua imagem e imperfeição? Talvez tudo faça parte de um grande misancene, no qual nada disso deve ser levado em conta; tudo não passaria de pretexto para deixar algumas amostras e confraternizarmos nas jantas. Talvez?!
Contudo, este modelo pode, justa ou injustamente, dar asas para a imaginação, inspirando filmes como: Terapia de risco e O jardineiro fiel. Além de incentivar as teorias de conspiração dos que acreditam em gnomos, são contra vacinas e acham que qualquer “química” é prejudicial. Neste caso, todos perderiam.
O marketing de todos os candidatos para eleições do executivo é igual a da maioria dos laboratórios. Ela é feita com o pressuposto que os eleitores são um misto de medíocres, imbecis e analfabetos. As comparações são indevidas, os números não batem, as extrapolações são espúrias, os convites às inferências são emocionais. A satanização dos oponentes é antidemocrática. Os autoelogios, bem, estes são apenas ridículos.
Alguns candidatos repetem o que lhe é dito, eles não entendem do que falam, não têm uma mente capaz para tal compreensão. Outros até teriam, mas não os interessa, acreditam, ou intuem, que é este discurso que funcionará para convencer os eleitores e é isto que importa. Eles ficam entre os desonestos intelectuais e os messias sem intelecto. Também temos os ideológicos que tiveram a sua capacidade de pensar corroída pelo vírus da própria ideologia. Entre outros menos cotados.
Acho que nós médicos não somos completamente medíocres, tampouco os eleitores imbecis de carteirinha. Mas só deixaremos de ser tratados como tais pelos laboratórios e/ou pelos políticos, quando ficar comprovado que eles não terão vantagens em nos tratarem desta forma. Parece que ainda não atingimos este estágio. Evidentemente, nem os médicos podem abrir mão da relação com os laboratórios, nem a população com políticos.
PS. Já tive oportunidade de conversar sobre isso com quase todos os representantes que me visitam. E o preço que cobro para ir às jantas ou palestrar é ser um chato problematizador.
Texto tirado do Blog do autor, Hemerson Ari Mendes, médico psiquiatra e psicanalista
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