sexta-feira, dezembro 02, 2022

República das Cesárias versus República dos Partos Somente do Jeito Meu

República das Cesárias versus República dos Partos Somente do Jeito Meu: mesmo que aceite variações, não escapam de minha "matriz moral"... Reflexões a partir do Podcast República das Cesárias:

Que questão difícil de se meter...

Porque os excessos em cesárias são inquestionáveis. De qualquer forma, há pontos importantes que merecem outras perspectivas ou até questionamentos… Farei isto em homenagem ao meu pai, ferrenho defensor do parto normal enquanto na Obstetrícia, carreira que abreviou em busca de melhor qualidade de vida. Pena que não o fez antes - teríamos tido mais contato naquele momento de nossas vidas...

Há outros vários para eventualmente debater. Irei trazer alguns pontos que acabei anotando não apenas mentalmente ao longo da escuta do podcast:

👉 Quando discutem uma situação de bebê em emergência médica, quem narra aceita muito excepcionalmente a possibilidade de uma episiotomia. Resta evidente, entretanto, a barreira cognitiva que impede até mesmo de mencionar a palavra cesária naquele cenário. Deveria, pelo menos, constar… Não fiquei com a impressão de que tenha "escapado". Fiquei com a impressão de que não conseguiria... De que não apenas não consegue se identificar com o caminho alternativo (que obviamente não merece ser o principal, o que lamentavelmente acontece no Brasil - de fato, mas não por mérito algum, a República das Cesárias), como rejeita ativamente qualquer preocupação nele contida, as caracterizando, mesmo que veladamente, como absurdas ou imorais. Ficou truncado, vamos novamente: Fiquei com a impressão de que não apenas não consegue se identificar com o caminho alternativo, como rejeita ativamente qualquer preocupação nele contida, as caracterizando, mesmo que veladamente, como absurdas ou imorais.

👉 Quando opta por não apresentar as probabilidades nuas e cruas*, mas estórias onde cesárias acabaram mal (talvez sabendo que a mente humana é um melhor processador de narrativas lógicas, não de probabilidades e incertezas), talvez ajude menos do que gostaria. Uma vez que, bem ou mal, quase todo leigo também conhece alguma de prejuízo por insistência em parto vaginal. Pode acabar percebido por muitos no varejo não exatamente como cientista, mas como ideólogo ou mero representante de uma causa. É o mesmo tipo de dilema que enfrentamos na Choosing Wisely Brasil: quando usar narrativas, muito tentadoras? Quando e como apresentar todas as cartas na mesa?

* Outcomes for which there is an increased respectively lowered risk for the mother or child with caesarean section, compared with* vaginal birth.

 👉 Questão que acaba com sugestão de que seja passado na criança nascida por cesária um algodão que previamente estaria na vagina da mãe é terreno de evidências diretas e indiretas ‘não confirmatórias’ e alguma controvérsias*, narrativa quase pura então (ao menos do ponto de vista de evidências clínicas e de comunicação final). Cuidemos que normalmente é isso que criticamos quando queremos ser incisivos em debates onde representamos o “menos é mais”. Para fazê-lo sem que nos acusem de simples apropriação de narrativa, devemos ser ainda mais rigorosos com as intervenções ou lado que simpatizamos. 

https://doi.org/10.1111/1471-0528.16176; https://doi.org/10.1111/1471-0528.16174:

👉 Sugerir que tudo é tirar “poder” ou “protagonismo” da mulher é misturar nortes científicos com valores e preferências. A definição de MBE até prevê, mas quem deve dar a palavra final é a mulher dona de seu próprio corpo, não? Não existem mulheres que, com toda informação que merecem, escolheriam por evitar protagonismo? Devem existir, uma vez que conheço (não necessariamente defendo) movimento de mulheres contra o feminismo...

 Estejam mal informadas por sistema que engana, ludibria, a solução é escolher por elas ou recalibrar o sistema? Deixo para mulheres responderem... 

E quem sabe avançarem no seguinte exercício teórico: esforçando-se para um risco basal o mais baixo possível de complicações, e de fato controlando com rigor o que é controlável, e não entrando nesta via a partir de qualquer condição não "ideal", numa análise pessoal da magnitude das diferenças entre os desfechos esperados para cada uma das possibilidades (parto vaginal e cesário), desde que aceitando o norte conceitual de que vaginal é, em média, melhor caminho em comparação à cesária, é realmente anticientífica e criminalizável se a eventual tendência da mulher for por cesariana, com o bebê a termo, bem datado e eles entrando em trabalho de parto??? 

Eu não diria que criminzalizável, mas, em sistemas de financiamento coletivo, bem como fundo único de recursos estruturais e monetários, eu acho que não seria exatamente justa: cesária impacta negativamente em indicadores como tempo de permanência hospitalar, e atacar a questão é gerar leitos virtuais, atender a fila, aliviar a superlotação das Emergências. Mas onde não é assim, não poderia representar uma escolha mais aceitável??? Deve ser tratada sempre daquele jeito? Será a primeira vez na Medicina que, baseando-se em valores e preferências, pacientes, com seus médicos, escolhem tratamentos inferiores? Isso está sempre errado então? Devemos assim retirar a bolinha das preferências dos pacientes da clássica figura com os pilares de Sackett?  O 'menos é mais' deve sempre e inegociavelmente prevalecer ou pode ser eventualmente relativizado?  

👉 Quando fazem a defesa de equipe obstétrica in loco, chegam num ponto muito familiar a mim e à minha história na Medicina. Estão falando de hospitalistas obstétricos, sejam médicos ou enfermeiros. 

Como quem tranquilamente pode dizer que antes de qualquer um discutiu isso no Brasil na Medicina, adiante de lugares que não conseguem funcionar sem equipes in loco (como UTI's), devo lembrar também que o modelo sempre avançou mais e apresentou mais sustentabilidade onde o referenciamento a equipes in loco, existindo outras possibilidades, não foi mandatório. Espernear que seja caminho único onde ainda não é se confunde facilmente com mera disputa de mercado. Ainda mais quando um lado acusa o outro de mercantil, quando não de mercenário, e acaba por defender um modelo onde aceitaria ganhar menos do que quem acusa (isso é verdade), mas que, para profissões como enfermagem, costuma representar um upgrade profissional, não apenas abnegação.

Nunca eu, ou os movimentos hospitalistas que impulsionei no Brasil, ou à Society of Hospital Medicine nos EUA, defendemos referenciamento mandatório a equipes in loco, e sim um crescimento pactuado com os mais diversos atores, construído inteligentemente e que, se necessário, aguarda mudanças sistêmicas.

Mesmo quando nos holofotes da defesa de equipes in loco nos hospitais brasileiros, viajando o país na fase em que "descobriu o hospitalista", nunca caí na tentação de achar que o modelo tradicional deveria ser como que "exterminado antes que cause mais danos". Digo mais, ainda percebo cenários onde me hospitalizaria ou a familiares em modelo não hospitalista, ao conhecer a magnitude da diferença e a realidade de muitos serviços com "equipes in loco" que existem por aí. Cabe evitar paixões exageradas, falsas dicotomias absolutas. Somos todos membros de uma mesma tripulação em sistema que é como um barco cheio de pequenos furos. Devemos evitar se ocupar demais lutando entre si para poder, ao menos, controlar os vazamentos e seguir navegando. 

 Sugestões de leituras complementares:


The benefits and risks of planned caesarean birth - National Guideline Alliance (UK).

A Mente Moralista "A moralidade agrega e cega. Isso não é apenas algo que acontece com as pessoas do outro lado. Todos somos sugados para comunidades morais tribais. Nós nos agrupamos em torno de valores sagrados e, em seguida, compartilhamos argumentos post hoc sobre por que estamos tão certos e “eles” estão tão errados. Achamos que o outro lado é cego à verdade, à razão, à ciência e ao senso comum, mas na verdade todo mundo fica cego ao falar sobre seus objetos sagrados." (from "A Mente Moralista: Por que pessoas boas são segregadas por política e religião" by Jonathan Haidt)

2 comentários:

  1. O sangramento uterino é a segunda causa de mortalidade materna, atrás da hipertensão arterial, e é muito mais comum após cesáreas. Não podemos nos esquecer que a maioria da população brasileira depende de atendimentos em hospitais filantrópicos ou públicos que não permitem escolhas da própria muitas das vezes, em ambientes as vezes com poucos profissionais, onde acontecem atendimentos inadequados

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  2. Perfeito, concordo. Perdão se não fui capaz de deixar claro isso no texto, mas em material complementar até dimensionam teu exemplo em números: risco relativo de sangramento é de 6,18 (6,00 - 6,32), com o que estimaram um NNH de 10: para cada 10 cesárias, 01 excedente de sangramento excessivo em comparação ao parto vaginal. Parto vaginal é melhor!

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