Recentemente estive em evento onde a farmacêutica Sanofi foi patrocinadora e esteve fisicamente presente através de estande / propagandistas. Ao perceber que buscavam gestores e médicos para divulgar uma iniciativa, resolvi me aproximar e conversei com um dos promotores.
Trata-se do Programa "TEV Safety Zone", uma iniciativa global de educação continuada e outras ações para prevenir o tromboembolismo venoso no ambiente hospitalar. O objetivo é auxiliar os hospitais, por meio de palestras para profissionais da saúde, auxílio para implantação de comissões hospitalares de prevenção de TEV e protocolos, e apoio para o treinamento da enfermagem. O programa contribui também para que os hospitais que estejam em processo de acreditação recebam sua certificação, segundo fonte oficial.
Quando questionei se o projeto tinha algum site de apresentação em língua portuguesa, o funcionário da indústria orientou-me a procurar informações via portal do HC/FMUSP, valorizando ainda a existência de um banco de dados eletrônico conjunto, com informações sobre o tema envolvendo diversas instituições hospitalares. Acabei encontrando o material abaixo dentro do portal da Disciplina de Clínica Médica e Propedêutica da USP, sem nenhuma referência visual ou textual à parceria com o laboratório:
"Banco de dados desenvolvido para que hospitais e clínicas cadastrados tenham acesso a uma ferramenta para registro de profilaxia de tromboembolismo venoso (TEV) em pacientes clínicos e cirúrgicos internados. Uma senha e usuário serão criados para o diretor do hospital ou clínica e para mais duas pessoas por ele designadas – tipicamente o profissional médico envolvido no programa e o responsável por alimentar o banco de dados. Os dados são registrados de maneira padronizada e é obrigatória a obtenção de consentimento pós-informação, ou de autorização do CEP local que libere a necessidade do consentimento, para que os dados aqui compilados possam ser utilizados em publicações científicas ou apresentações em congressos" - saiba mais aqui.
Sequer tenho convicção de que bati corretamente as informações ou de que não existem outros espaços virtuais do próprio HC/FMUSP onde apresentem a parceria abertamente, mas, de qualquer forma, alguns pontos merecem ser discutidos em uma perspectiva sistêmica:
1. Devem grupos que lidam diretamente com ensino médico em graduação e estudantes de Medicina participar deste tipo de aliança?
2. É relevante alguma referência ao vínculo com indústria farmacêutica por parte de autarquias estaduais ou outras organizações tuteladas pelo Estado brasileiro em projetos desta natureza? Por quê?
3. É indiscutível a complexidade dos processos necessários para adequada e bem sucedida implantação de protocolos nas organizações de saúde. Mas realmente é preciso parceria com a indústria na elaboração de recomendações e treinamentos locais? Quais são os reais desafios para homogeneização de práticas e condutas a partir de protocolos institucionais e para a capacitação de corpo funcional dos hospitais? Se entendo mais fácil o papel da indústria no grandes congressos médicos, alguns quase espetáculos circenses, nessas situações faz a diferença? E se faz, como? Vantagens e desvantagens?
No hospital em que trabalho em Porto Alegre dispomos de inúmeras comissões ativas e produtivas no campo da qualidade e segurança, não sendo necessário em nenhuma delas este tipo de suporte. Uma parceria com a indústria para implantação de comissões hospitalares de prevenção de TEV, onde vislumbram "um grupo multidisciplinar envolvido, constituído de profissionais dos principais serviços, como clínica médica, terapia intensiva, cardiologia, pneumologia, cirurgia geral, enfermagem e farmácia", não se presta muito mais a estimular o contato de lideranças e formadores de opinião com a empresa?
Considerando que a empresa produz especificamente o CLEXANE®, o processo de decisão da instituição entre marcas e tipos de anticoagulantes semelhantes poderia ser influenciado de alguma forma?
Já o "trabalho de apoio para o treinamento da enfermagem" fez-me lembrar de iniciativa semelhante que vivenciei em instituição onde no passado trabalhei. Uma indústria de tecnologias promoveu capacitação de enfermeiros e técnicos e, amparados pela premissa [verdadeira] de que "em sepse, tempo é vida", estimulava os profissionais a trazerem dispositivos já prontos para o uso (com a embalagem aberta).
E por fim, chamo atenção de que anunciam construir todas as recomendações técnicas a partir da Diretriz Brasileira de Profilaxia de TEV em Pacientes Clínicos Internados (AMB/CFM). Neste documento, onde declaram os conflitos de interesse envolvidos, informam que o grupo elaborador contou com o apoio logístico da Sanofi-Aventis do Brasil, havendo consultores da empresa entre os autores, bem como membros do Advisory Board da Sanofi-Aventis do Brasil.
Em momento tão complicado para os médicos brasileiros, em que estamos sendo jogados contra a população pelo Governo, na tentativa de melhorar nossa imagem, não seria oportuno abandonarmos a soberba de acreditar que políticos se perdem quando envolvidos em relacionamentos complicados, mas médicos jamais? Mesmo reconhecendo que a maioria dos médicos e sociedades médicas age corretamente perante conflitos de interesse, mas na falta de barreiras efetivas e transparentes para o contrário, não seria um bom momento para mostrar que também queremos parecer publicamente que agimos bem? E então evoluir em políticas de relacionamento com elementos além da simples declarações de conflitos de interesse?
Que esta e outras questões sirvam para debate construtivo...
Excelente Guilherme! Vejo muitos profissionais vinculados à pesquisa clínica viajando o mundo em congressos, bancados pelos estudos internacionais da indústria farmacêutica....
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