sábado, agosto 24, 2013

O Estranho Mundo do Overdiagnosis

Neste mês, o ex-presidente americano George W. Bush fez um teste de esforço, recebeu o diagnóstico de doença coronariana, e foi submetido a implante de stent em uma das artérias de seu coração. Na alta hospitalar, saiu acreditando que se beneficiou, porém mal sabe ele que sofreu do que a literatura médica internacional denomina overdiagnosis.

Overdiagnosis é um diagnóstico verdadeiro, porém desnecessário, com maior potencial de causar danos do que benefícios. Este fenômeno decorre da cultura do check-up, propagada pelo lobby em prol do excesso de exames em pessoas saudáveis. Em contraposição, o pensamento médico-científico propõe que a realização de exames se justifique pela existência de um benefício clínico advindo do diagnóstico. E não pela falsa perspectiva de proteção gerada pelo exame. Em pessoas saudáveis, assintomáticas, há exames que devem e outros que não devem ser realizados.

O senso comum sugere que o “desentupimento” da artéria de Bush foi benéfico. No entanto, isto vai de encontro à totalidade das evidências científicas de qualidade (COURAGE, BARI 2D, FAME-II): no paciente estável, “desentupimentos” não previnem morte cardiovascular, nem infarto. Isto ocorre porque a intervenção é feita na placa de gordura que mais impressiona visualmente, sendo que o infarto pode decorrer de qualquer das inúmeras placas invisíveis que residem em todo leito coronário. O que previne infarto é o controle dos fatores de risco. Principalmente controle do colesterol elevado, da hipertensão arterial e tabagismo. Este deve ser o verdadeiro enfoque preventivo.

O benefício do procedimento que Bush recebeu é útil para controlas dos sintomas de angina. Porém Bush não pode desfrutar deste benefício, pois não sente nada, tendo recentemente pedalado 30 milhas em um evento que homenageou veteranos da guerra do Iraque. Desfrutou, isto sim, do estresse psicológico do internamento, do desconforto de uma intervenção invasiva, da necessidade de uso prolongado de drogas antiplaquetárias, além do alto custo de seu procedimento.

Outra exemplo de overdiagnosis é o rastreamento indiscriminado de alguns cânceres em pessoas assintomáticas. Por exemplo, a realização anual do exame de PSA para pesquisa de câncer de próstata em homens assintomáticos. Embora câncer de próstata em alguns casos possa ser fatal, está provado cientificamente que fazer PSA de rotina não reduz probabilidade de morte por esta doença. Isto porque na prática, a detecção de cânceres precoces e localizados não necessariamente previne cânceres avançados, como sugere o senso comum. Em contrapartida, a cada 1000 homens que realizam PSA, 200 sofrem biópsias desnecessárias, 29 terminam impotentes e 18 com incontinência urinária devido a previsíveis efeitos advindos do tratamento resultante do overdiagnosis. Por este motivo, no ano passado a US Prevention Task Force (órgão americano que recomenda exames preventivos) contraindicou o uso de PSA em homens assintomáticos. Paradoxalmente, PSA continua sendo um dos mais populares exames em nossa prática médica. Isto não quer dizer que a pesquisa do câncer de próstata e seu tratamento cirúrgico não esteja indicada em certos casos, principalmente em pacientes com sintomas. O overdiagnosis se refere ao uso do exame em qualquer pessoa, independente de seus fatores de risco ou quadro clínico.

Esta discussão não propõe que passemos a negligenciar a medicina preventiva. Propõe que os exames certos sejam realizados nas pessoas certas. Ao solicitar um exame, tenhamos em mente que em última instância o objetivo é beneficiar o sujeito clinicamente. Há casos em que o rastreamento para câncer e a pesquisa da doença coronária devem ser realizados. Segundo, devemos lembrar que prevenir não é necessariamente fazer exames, há situações em que a prevenção vem de outras condutas. 

Quando presidente, George W. Bush diagnosticou que o Iraque representava uma ameaça ao mundo ocidental e promoveu uma guerra de benefícios questionáveis e eventos adversos evidentes. Dez anos se passaram e agora seus médicos fizeram o mesmo: diagnóstico desnecessário e tratamento fútil. Tudo não passa do estranho mundo do overdiagnosis.

* Artigo publicado no Jornal A Tarde, de Salvador, por Luis Correia

sexta-feira, agosto 16, 2013

Farmacêuticas versus médicos: existem limites para a interação?

Artigo originalmente publicado em Saúde Web.

Ministério Chinês de Segurança Pública emitiu comunicado, em julho deste ano, alegando que executivos da subsidiária local de uma grande multinacional farmacêutica tinham sido acusados de subornar médicos chineses por longos períodos. Esses executivos teriam persuadido os médicos a prescrever determinados medicamentos para pacientes. Na comunicação, a autoridade chinesa alega terem sido pagos aos médicos “valores volumosos”, os quais teriam sido operados por meio de agências de viagens, médicos, hospitais e outros profissionais, com o objetivo de “inaugurar canais de venda e aumentar receitas farmacêuticas”.

Enquanto desenvolvem-se procedimentos administrativos e processos judiciais, diversas questões devem ser feitas em conexão com essas acusações. Especificamente para o Brasil, uma dúvida precisa ser encaminhada: existem regras objetivas limitando os níveis de interação entre a indústria farmacêutica e os profissionais do setor médico?

Sim, elas existem e não são nada subjetivas. Não se questiona que a indústria farmacêutica necessita, constantemente, contatar profissionais de saúde de forma a alcançar, com a maior eficiência possível, os benefícios da pesquisa biomédica, bem como para evoluir do desenvolvimento de terapias dedicadas à prevenção, diagnóstico e tratamento de condições adversas de saúde.

Contudo, de forma a assegurar níveis de confiança e ética no relacionamento, bem como garantir o cumprimento das regras e padrões aplicáveis no Brasil (e não apenas aqueles existentes nos países sede das matrizes das companhias), as operações brasileiras deverão desenvolver, implantar e, especialmente, manter atualizadas políticas factíveis e realistas, que estabeleçam os objetivos, contextos e limites para a interação indústria/profissional da saúde.

Não obstante a ampla variedade de temas que poderiam constar em uma política de relacionamento, as diretrizes mais adequadas devem encaminhar, com atenção e foco local, os seguintes itens: oferta de presentes; pagamento de alimentação; distribuição de amostras; permissão de acesso de profissionais às instalações da companhia, incluindo para fins de pesquisas; patrocínio de atividades de educação médica continuada; participações endossáveis em palestras e autoria de artigos científicos.

Na dúvida sobre cobrir ou não um tópico em determinada política, é recomendável refletir sobre a possibilidade de que toda iniciativa que merece investimento e atenção do ponto de vista de vendas e de promoção, mereceria, igualmente, foco sob a ótica de compliance.

Especificamente, a premissa das interações com médicos deve ser aquela que expressamente estabeleça ao profissional que ele não terá qualquer obrigação de angariar, referenciar ou arregimentar pacientes para a indústria farmacêutica. E o profissional médico não deverá, de forma alguma, receber benefícios em decorrência desses atos, tampouco ser sancionado por não fazê-lo.

No que tange às particularidades brasileiras, cabe notar resoluções e determinações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e dos Conselhos Médicos que, em alguma medida, já estabelecem deveres de divulgação quanto à existência de relacionamento entre médicos e a indústria farmacêutica. Não se trata do Sunshine Act brasileiro, mas também não se pode advogar pela inexistência de um modelo local próprio.

Independentemente da sua complexidade, extensão ou estrutura, toda e qualquer política de compliance farmacêutico que pretenda ser eficiente deverá manter um simples e extremamente indelével objetivo: manter a cultura corporativa, em todos os seus níveis, que seja construtiva e diretamente permita aos profissionais médicos exercer livremente suas atividades, incluindo, especialmente, sua autonomia de adotar suas decisões médicas e profissionais sem ingerência da indústria.

Para os executivos com dificuldades em aceitar tal premissa ou mesmo implantá-las, fica uma previsão. Sua próxima atividade de interação com profissionais com médicos poderá estar ameaçada. Assim como a sua reputação e a da sua companhia.

* Benny Spiewak é advogado, sócio responsável pelas áreas de Defesa, Propriedade Intelectual, Life Sciences e Tecnologia do escritório ZCBS – Zancaner Costa, Bastos e Spiewak Advogados; especialista em Propriedade Intelectual e Tecnologia pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP); especialista em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia pelo The Franklin Pierce Law Center (Concord, EUA) e mestre em Direito da Propriedade Intelectual (LLM), formado pela The George Washington University. 

sábado, agosto 10, 2013

George W. Bush e seu stent no The Washington Post

Dois médicos criticaram publicamente a abordagem do paciente VIP: Leia na íntegra aqui.

Ex-presidente Bush era / é assintomático. Mais do que isto, é um atleta.

Recentemente pedalou cerca de 50km. Leia mais aqui

Impossível não lembrar do blog Medicina Baseada em Evidências...

Como deixar de comparar este VIP com o "Papai Noel" do cardiologista Luis Cláudio Correia [em referência à postagem Papai Noel precisa de check-up antes do Natal?]?!

Outros artigos de Correia sobre o tema:





Pena que este tipo de coisa abafa esforços como o de Correia ou dos médicos que escreveram no The Washington Post. Sem o mesmo alcance, vence de goleada a cultura do exagero e do desperdício.  

quinta-feira, agosto 08, 2013

A promiscuidade entre a indústria e a medicina: o exemplo da Nestlé e da Pediatria no Brasil

Reprodução de texto de Daniel Becker, médico pediatra

"Imaginem a cena: milhares de adultos fazendo filas para comer papinhas de bebê requentadas em réchauds de aço inox. Médicos se acotovelando para devorar leitinhos infantis açucarados e biscoitos de aveia e mel. Centenas de respeitáveis profissionais ansiosos para responder um joguinho de perguntas e ganhar bichinhos de pelúcia; jogando dadinhos gigantes para ganhar picolés de graça.

Estas cenas não pertencem a alguma comédia dos Trapalhões ou a um pesadelo de pais esgotados. São reais e colocam, de forma muito eloqüente – e caricatural, neste caso – uma faceta pouco conhecida da medicina: a relação entre indústria farmacêutica e médicos.

Existem muitas restrições que limitam a propaganda de remédios diretamente para o consumidor. Portanto, o médico, que prescreve a droga, acaba sendo o alvo preferencial da indústria. Há várias formas de cooptar a “opinião cientifica” de médicos. E os alvos mais valiosos são aqueles que se encontram em posição de influenciar decisões que gerem mais vendas – seja por influência no público diretamente, no governo, na mídia ou – muito importante – em outros médicos.

A indústria pode, por exemplo, financiar estudos “científicos” sobre seus produtos, mascarando ou alterando resultados; manipulando estatísticas e mesmo, estratégia mais comum, trazendo a público apenas os que deram resultados favoráveis (os que mostram que o remédio não funcionou vão para a gaveta). Médicos recebem dinheiro (de forma direta, mas velada) da indústrias para promover direta ou indiretamente uma droga; médicos são seduzidos por favores como passagens para congresso, viagens e estadias pagas em hotéis caros, aparelhos de todo tipo, comissões, pagamentos para publicar artigos, dar palestras que mostram como é bom tal ou tal remédio… enfim, são muitas as estratégias.

Uma das mais criativas é a da Nestlé Brasil. A maior indústria de alimentos infantis do planeta que escolheu como estratégia – extremamente inteligente – influenciar nossos pediatras. Ora, pediatras influenciam mães e pais, com autoridade de quem cuida da saúde de nossos filhos! Quer melhor que isso para vender? 

Infelizmente, em nosso pais e em muitos outros, o desmame precoce ainda é uma triste realidade. E muitas vezes ocorre devido ao conselho de profissionais de saúde, entre eles, pediatras e obstetras. Maternidades são conhecidas pela prática de oferecer complementos para recém nascidos, muitas vezes desnecessariamente, à revelia das famílias. A Sociedade Brasileira de Pediatria faz um belo trabalho de defesa e promoção do Aleitamento Materno – recentemente, por exemplo, pressionando pela aprovação da licença de 6 meses. Mas por outro lado, tudo, literalmente tudo que a SBP faz é patrocinado pela Nestlé. A indústria colou de tal forma a sua marca à SBP que chega a ser bizarro. Todas as publicações da Sociedade de Pediatria vem com o logo “Nestlé Nutrition”. Cursos, atualizações, manuais, correspondência… tudo. É muita simpatia. A Nestlé está de tal maneira identificada com a pediatria brasileira, que causa fascínio em todos os que vem a conhecer este “case” de marketing. E é muita ambigüidade: por um lado lutar pela amamentação e por outro lado se apoiar inteiramente na indústria que historicamente foi a pior inimiga do leite materno, e cujos produtos, que deveriam ser uma espécie de reserva técnica para casos excepcionais, são propagandeados diariamente para médicos (aliás, os de outras indústrias também).

E aí… semana passada passei um dia no Curso Nestlé de Atualização em Pediatria, oferecido (sem custos) anualmente pela empresa e freqüentado por milhares de pediatras de todo o pais. A edição 2012 foi no Rio, e fui lá para assistir uma aula específica.

O que vi era difícil de acreditar. Um pátio gigantesco, no Riocentro. Milhares de médicos, a maior parte acima de seus 40 anos, se acotovelavam para participar das promoções da Nestlé. Eram “quizes” de perguntas (quase todas relacionadas direta ou indiretamente a produtos da empresa) para ganhar… bichinhos de pelúcia; joguinhos da memória infantis sobre as papinhas Nestlé, para ganhar pingentinhos; joguinhos de dados gigantes para ganhar picolés; fotos com logo de iogurte para colocar no Facebook; videogames com símbolos de produtos para ganhar mais brindes infantis. Nos stands servia-se chocolatinhos, leitinhos, Ninho Soleil, Chambinhos, biscoitos, sorvetinhos e pasmem: papinhas Nestlé. Em réchauds de aço inox, servidos por mocinhas em traje de chef. Em todas as estações, centenas de pediatras se acotovelavam para participar, provar papinhas e ganhar brindes infantis. Isso em meio a propagandas gigantescas de todos os produtos da empresa, em especial os leites para bebês.

Ora, uma coisa é propaganda lúdica, bem humorada. Mas o que vi ali foi um show de infantilização simplesmente inacreditável. Uma empresa se propondo a tratar pediatras como crianças e pediatras assumindo esse papel de forma caricatural. Assim fica muito fácil imaginar como a Nestlé se inscreve no imaginário destes profissionais. Como eles de forma inconsciente transformam a empresa numa “Grande Mãe” que os ama, e portanto, merece amor filial. Uma mistura genial de marketing e psicanálise, que para alguém que conseguia ver este cenário um pouco “do lado de fora”, parecia um verdadeiro show de horror."

O autor criou espaço no Facebook para ilustrar um pouco o que descreveu:
http://www.facebook.com/media/set/?set=a.331214660302932.73078.150013085089758&type=3
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