A barganha é uma das práticas da máfia que envolve empresas e hospitais do Rio: em troca de propinas, médicos usam material de segunda e operam sem necessidade.
Revista Veja - 22/12/2014 - Cecília Ritto
Revista Veja - 22/12/2014 - Cecília Ritto
Submeter-se a uma cirurgia para a colocação de prótese no coração já é uma situação de grande estresse para qualquer um. Mas pior que isso é descobrir depois que o procedimento foi em vão - ou que o material implantado era da pior qualidade. Pois esse tipo de barbaridade vem ocorrendo na rede pública - e mesmo em hospitais privados - há décadas. Ela é parte de um esquema de corrupção ramificado e poderoso que agora começa a ser desbaratado.
Uma investigação da Polícia Federal do Rio de Janeiro, ainda em curso, identificou uma rede que envolve dezenas de médicos, além de donos e diretores de hospitais, que recebem propinas para comprar certos produtos de determinados fornecedores (até agora, dezesseis foram identificados). Para fazerem a roda da corrupção girar, essas empresas distribuem aos profissionais de saúde de viagens e carros importados a consultórios novos e dinheiro vivo - transportando em carro blindado. A propina varia de 10% a 20% do valor das compras, invariavelmente superfaturadas. Essa máfia drenou, por baixo, 120 milhões de reais só nos principais hospitais federais do Rio. Os detalhes do esquema foram revelados a VEJA por quatro ex-participantes que concordaram em colaborar com a polícia, alguns por meio do instrumento da delação premiada.
Próteses e órteses são o tipo de material mais caro na escala de compras da saúde. E, por terem uma míriade de especificações técnicas, sua seleção pelo médico carrega sempre um grau de subjetividade. Para dar legitimidade às escolhas, a máfia passou a recorrer a uma brecha legal que permite abandonar a tabela padrão do SUS e recorrer à chamada "licitação por adesão", por meio da qual ela conseguia estabelecer novos patamares de preços. Um médico do setor vascular de um hospital público explicou a VEJA como isso funciona: "A fornecedora convence um hospital federal do interior, menos visado, a abrir licitação de um produto e põe um preço lá no alto. Ganha e, depois, outros hospitais aderem a esse valor". A manobra já operou o milagre de fazer uma prótese que custa 14 000 reais na tabela do SUS alcançar o preço de 100 000 reais.
O caso dos stents - tubos inseridos nas artérias para prevenir entupimentos - é exemplar. Nos hospitais federais do Rio, eles vêm, em grande parte, de um lote comprado há quatro anos de fabricantes chineses sem histórico no mercado nem certificação internacional de qualidade. O preço é o mesmo das próteses americanas, que possuem a certificação e são consideradas as melhores do mercado. "Como a chinesa não tem histórico conhecido, não se sabe como os pacientes que a receberam reagirão no futuro", alerta o médico. Seus colegas sabem do risco, mas optam por esses stents em troca de viagens à China, com escalas na Europa e todas as despesas pagas. A cada três stents do modelo mais caro colocados - meta estabelecida pelo fabricante chinês - o médico ganha uma viagem. Segundo o médico, que aderiu à delação premiada, há quatro anos um grupo do Hospital dos Servidores dedica-se a explorar vários pontos turísticos da Ásia e da Europa graças ao bom desempenho nessa disputa sórdida. Os delatores ouvidos pela PF relatam ainda casos escabrosos de cirurgias desnecessárias. "Sei de pelo menos um cirurgião que encheu a coluna de uma pessoa de molas e parafusos à toa. Esse procedimento custa, em média, 250 000 reais só de material. O fabricante comemora e o médico ganha sua recompensa", relata o dono de um hospital que realiza 25 cirurgias ortopédicas por mês.
A PF também descobriu que, quanto mais compras um médico indica, maior seu status no esquema - e, portanto, maiores os prêmios. É o caso de profissionais de hospitais privados que, de olho unicamente nos próprios ganhos, exigiam determinados materiais e fornecedores de planos de saúde. Muitos até orientavam os pacientes a insistir, se preciso indo à Justiça, em só aceitar aparelhos e procedimentos de altíssimo custo. Para essa elite, as empresas contratavam mensalmente um carro blindado, que fazia a entrega dos pagamentos em dinheiro vivo, como relatou a VEJA o dono de um hospital privado da Zona Sul do Rio, que fez acordo de delação premiada. "O carro blindado percorre os consultórios entregando uma mesada que faz os rendimentos desses médicos mais do que dobrar." Foi a descoberta de um braço do esquema no plano de saúde dos Correios - uma cirurgia de coluna que a tabela avaliava em 120 000 reais e saiu por quase 1 milhão - que desencadeou a operação em andamento na PF do Rio. Ela é a primeira a desvendar em detalhes o modo de operação da máfia, mas não é a única. O Denasus, o sistema nacional de auditoria do setor, também deflagrou uma investigação quando, em 2012, os gastos do Ministério da Saúde com próteses e órteses bateram no inacreditável patamar de 1 bilhão de reais. Apenas um plano de saúde, a Unimed, gastou 3.8 bilhões de reais em 2013 com esse tipo de material. Espera-se que essa sangria agora comece a estancar.
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