quarta-feira, setembro 29, 2021

O cérebro ético na Medicina (o eu ético - o outro não)

Postagem originalmente em Saúde Business (2015), mas está desconfigurada lá. É ainda parte de um conteúdo maior, disponível aqui.


"Estudos em neurociência e psicologia sugerem que toda pessoa pode ser um pouco mais influenciável do que costuma pensar que seja. E não é surpreendente que médicos pensem que conflitos de interesses não os afetam pessoalmente, apenas aos outros.

Na avaliação de autores de diretrizes clínicas citada previamente (Choudhry et al., 2002), quando perguntaram se existia a possibilidade do relacionamento afetar recomendações, apenas 7% disse que sim - considerando suas próprias recomendações - mas praticamente 1/5 respondeu que o colega poderia ser influenciado. Vários são os trabalhos onde este resultado se repete. Reforça o paradoxo atual da civilização ocidental: cada um de nós, individualmente ou em grupos organizados, tem a crença de estar muito acima de tudo que aí está.

Ninguém aceita, ninguém aguenta mais, nenhum de nós pactua com o mar de lama. O problema é que, ao mesmo tempo, o resultado de todos nós juntos é precisamente tudo o que aí está, estamos muito aquém da somatória das nossas auto-imagens individuais ou corporativas (Blum, 1994; Sandel, 2005; Wojciszke, 2005; Bocian e Wojciszke, 2014).

Se é compreensível que a maioria de nós veja a si mesmo como pessoa ética que sob hipótese alguma colocaria sua objetividade a venda, isso atrapalha, e muito, a busca por soluções.


Possíveis soluções e outras considerações:

Em diversos espaços onde atuamos discutindo o tema, costumamos sugerir, genericamente:

1. Se existe uma fórmula para reconhecer antecipadamente indivíduos não éticos, para dividir pessoas em "do bem" e "do mal", a desconhecemos. Então nada mais lógico do que considerar soluções que independam disto, mesmo que possam trazer entraves para quem anda na linha;

2. Descriminalização do debate
Outra cultura é necessária, onde conheçamos e reconheçamos efetivamente como se dão as relações entre médicos e a indústria farmacêutica e de tecnologias, seja enquanto pessoas físicas ou através de suas entidades ou empresas. A evidência empírica demonstra que são absolutamente raros os casos onde, ao se encontrarem, médicos e representantes da indústria olham um para o outro e dizem: “é eu e você, e dane-se o paciente”. No varejo, estes contatos costumam ocorrer entre profissionais dedicados, e, principalmente, com médicos bem intencionados acreditando estar fazendo boas coisas, ou, pelo menos, não prejudicando terceiros da maneira perversa como se costuma apresentar o problema, seja na mídia leiga, seja pelas próprias entidades médicas que se atrevem a desbravar criticamente o tema. Quem já vivenciou o cotidiano das entidades médicas, fazendo congressos, muito possivelmente também já se deparou com a dúvida: "estão pedindo isto, é?!" (se referindo a patrocinadores). "Não será por uma palestra que comprometeremos o todo, não é?". Quem não ficaria em dúvida?? A cadeia de causalidade que vai do patrocínio à prescrição é longa, complexa, difícil de delinear e compreender e, se jogada no terreno da moralidade, geradora de barreiras cognitivas que tornam os profissionais impermeáveis ao debate;

3. Foco no problema
Outro desafio é procurar separar estas questões de outras que, muito comumente, vêm em seu bojo: pautas ideológicas ou políticas, por exemplo. Tem sido frequente a instrumentalização desse debate por ativismos de todo tipo (anti-capitalismo, anti-medicina, anti-medicações, anti-psiquiatria, e suas contrapartes), produzindo um cenário falsamente moralizado, artificialmente polarizado e, consequentemente confuso, que inviabiliza a construção de um espaço de “ética possível”, como se houvesse uma condição ideal a priori, um fundamentalismo[*] do qual não se pode abrir mão;

[*] De acordo com Houaiss (2009), fundamentalismo é “qualquer corrente, movimento ou atitude que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos; integrismo”.

4. Menos críticas e mais hipóteses, em busca por soluções;

5. Mais ciência e menos “achismo”: testar, avaliar, rediscutir, modificar;

6. Mudança de cultura em todos os níveis;
A regulação tem que começar por quem tem mais poder e transbordar para o dia-a-dia do médico mais comum. Quase todas as iniciativas até hoje pensadas em nosso meio insinuaram regular apenas o profissional da “ponta”, deixando de fora quem toma decisões maiores e, consequentemente, as associações médicas. Sugere-se com essas medidas que, entre outras coisas, quem ocupa cargos de liderança teria automaticamente maior capacidade de gerenciar conflitos de interesse, o que não é necessariamente verdade, pelo contrário. Supervaloriza-se o efeito da bugiganga recebida pessoalmente do laboratório, em detrimento dos grandes financiamentos “institucionais”;

7. É preciso reformularmos ontem o modelo de remuneração na Saúde, distanciando-se do fee for service.

Em suma, precisamos dar a esse debate a dimensão que ele merece e aportar a ele aquilo que a medicina tem de melhor: sua ciência e sua ética. Esse é o desafio.

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