quarta-feira, dezembro 18, 2013

O Colesterol Politicamente Correto

Artigo de Luis Cláudio Correia, fazendo um contrapondo parcial ao de Drauzio Varella

"Ao analisar criticamente evidências, confesso que mantenho um viés de desconfiança da indústria farmacêutica, pois esta frequentemente propõe condutas lucrativas, porém não suficientemente embasadas. No entanto, precisamos reconhecer propostas que, embora lucrativas, sejam clinicamente benéficas. Estatinas reduzem risco de infarto em pessoas com colesterol elevado." LEIA MAIS EM MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS

O próprio Luis Cláudio Correia fez críticas às novas recomendações em Guideline ACC/AHA sobre Colesterol: The Good, the Bad and the Ugly, demonstrando que sabe criticar, bem como defender uso de medicamentos. Neste contexto, se acabamos defendendo posicionamentos que beneficiam a indústria farmacêutica, paciência: nosso foco é a Medicina Baseada em Evidências.

Tem sido freqüente a instrumentalização desse debate por ativismos de todo tipo (anti-capitalismo, anti-Medicina, anti-medicações, e suas contrapartes), produzindo um cenário confuso, que inviabiliza a construção de um espaço de “ética possível”, como se houvesse uma condição ideal a priori da qual não se pode abrir mão. Nosso pressuposto é de que a ética das relações humanas é uma construção histórica e social, portanto é possível sua existência em qualquer tempo, lugar ou sistema econômico.

É com esta mensagem que concluímos os trabalhos de 2013.

Bom natal e feliz 2014!

Multinacional farmacêutica não vai mais pagar a médicos para promover medicamentos

A GlaxoSmithKline, uma das maiores multinacionais farmacêuticas, decidiu não pagar mais viagens e palestras a médicos para a promoção de seus medicamentos.

A empresa britânica também mudará a forma de remunerar seus propagandistas, que deixarão de receber de acordo com o número de receitas prescritas pelos médicos que eles visitam.

A decisão, anunciada anteontem, é inédita entre as multinacionais farmacêuticas e entrará em vigor nos países onde a empresa atua a partir de 2014. Nos EUA, um programa-piloto já está em vigor desde 2011.

Em nota, a GSK no Brasil disse que seguirá as determinações da matriz. Informou que a empresa vem tomando uma série de medidas com o objetivo de aumentar a transparência de suas práticas.

Por décadas, as companhias farmacêuticas têm pago médicos para falar a favor de seus medicamentos em congressos e conferências. Como formadores de opinião, eles influenciam na decisão de outros profissionais.

Vários estudos, no entanto, têm demonstrado que essas práticas geram grandes conflitos de interesses e podem levar a prescrições inadequadas (desnecessárias ou mais caras) aos pacientes.

No caso da GSK, a decisão vem no momento em que a empresa é alvo de investigação na China por pagamentos ilegais a médicos e autoridades do governo. Suspeita-se que a empresa pagasse médicos para viajar a conferências que nunca ocorreram.

Nos EUA, a GSK encabeça a lista das farmacêuticas recorrentes em penalidades.

Andrew Witty, o CEO da empresa, disse que as mudanças não têm relação com as investigações na China e que fazem parte dos esforços da empresa de estar em consonância com a atualidade.

"Nós já vínhamos nos perguntando se não haveria outras diferentes e mais eficazes formas de operação do que os caminhos que nós, como indústria, temos operado nos últimos 30, 40 anos?"

Segundo a GSK, a empresa não vai mais pagar aos profissionais de saúde para falar sobre seus produtos ou doenças que tratam e tampouco apoiá-los financeiramente para assistir a conferências médicas. A empresa não informou o quanto economizará com as medidas.

O laboratório informou ainda que continuará pagando aos médicos honorários de consultoria para pesquisa de mercado e que também vai estudar novas alternativas para colaborar com a educação médica, com informações claras e transparentes.

Fonte: Cláudia Collucci, Folha de São Paulo

Ligações perigosas: indústria farmacêutica, associações de pacientes e as batalhas judiciais por acesso a medicamentos

Reflexão sobre as ligações entre a indústria farmacêutica e as associações de pacientes, resultando em novas estratégias de expansão do mercado que podem agravar o panorama da saúde brasileira em relação à judicialização e ao uso crítico e responsável de medicamentos.

Cresce abuso na prescrição de drogas para deficit de atenção

Mais uma vez a jornalista da Folha mostrou porque é especialista em saúde. Consegue ir além do muito mais fácil dualismo simplório. Para muitos, inclusive médicos, é mais confortável colocar-se no lado que dá remédio para todo mundo, ou no lado que não quer dar para ninguém. Em matéria sobre TDAH, Cláudia Collucci trouxe pontos de vistas que reforçam a existência do TDAH, "uma desordem legítima que impede o sucesso na escola, no trabalho e vida pessoal", bem como o espaço para sua medicalização, ao mesmo tempo em que é capaz de criticar excessos e exageros.

CLIQUE NA FIGURA E LEIA


segunda-feira, dezembro 09, 2013

Rastreamento de Câncer de Próstata


Hoje, "jovem" da minha idade, 37 anos, perguntou-me se fez muito errado em "riscar" um PSA da lista de exames que um renomado médico de Porto Alegre, sócio proprietário de uma bela e bem sucedida organização de "prevenção, qualidade de vida, bem-estar e saúde", havia lhe solicitado. Assintomático e sem história familiar, carregava mitos em relação a possibilidade daquilo lhe conduzir ao toque retal. Desconhecia qualquer outro risco da investigação ou possíveis desdobramentos.

Inicialmente disse que não gostaria de opinar. Imediatamente refleti, mentalmente, o significado daquela atitude: estava abdicando de ser médico. Sei que "não estava médico" naquele momento, por se tratar de um conversa informal. 

Eis que fui provocado por um terceiro. E não me aguentei!

"Bah, Guilherme tem uma visão um tanto quanto radical nestas questões de prevenção, não acha importante", disse.

Discuto várias questões controversas e confesso que minha tendência pende quase sempre para o lado conservador. Mas no caso em questão, não há controversa até que evidências contrárias surjam. Não sou eu quem diz, é a própria Sociedade Brasileria de Urologia, com toda sua tendência intervencionista: "A Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) acaba de atualizar suas recomendações para o câncer de próstata e lança um livro com a compilação desses dados durante o 34º Congresso Brasileiro de Urologia, de 16 a 20 de novembro, em Natal (RN). Vinte e cinco especialistas - entre eles, urologistas, oncologistas e radioterapeutas - se debruçaram por dois anos sobre os últimos estudos da doença para definir diretrizes a serem seguidas pelos médicos brasileiros. Entre as novas indicações da entidade está o aumento da idade para diagnóstico precoce do câncer de próstata: 45 anos para homens com casos da doença na família ou negros e 50 anos para os demais. Antes a recomendação era de, respectivamente, 40 e 45 anos. "É uma tendência mundial essa mudança. Ela é baseada nos trabalhos científicos publicados nos últimos anos", diz o presidente da SBU".

Isto é o que pensa quem descobriu o PSA.

Respondi que é por causa de gente que faz má Medicina, pedindo testes inadequadamente, que vamos todos abraçados para o fundo do poço: médicos e pacientes, o sistema de um modo geral. 

Naturalmente, mudamos de assunto. Por óbvio, também não foi assim que pude "ser médico".

Não está fácil...

Assim como existe o "rei dos camarotes", há os "reis da prevenção" - e seus discursos, inegavelmente, são sedutores:  


Quem não quer não ter câncer de próstata?

Luis Cláudio Correia, colaborador deste espaço, escreveu Screening para Ca de Próstata - Há Evidências? em seu outro Blog.

Mais recentemente a US Preventive Services Task Force publicou recomendações que, se são questionáveis em alguns pontos, não deixam dúvida quanto ao que fazer com indivíduo com menos de 40 anos, assintomático e sem história familiar. 

sábado, dezembro 07, 2013

Iniciativa semelhante no Chile

MÉDICOS SIN MARCA es una agrupación chilena de médicos que busca promover un ejercicio clínico responsable, basado en evidencia y libre de las influencias de la propaganda y los incentivos provenientes de la industria farmacéutica y de dispositivos médicos.


quarta-feira, dezembro 04, 2013

Darwin e a prática da "Salami Science"



Em 1985, ouvi pela primeira vez no Laboratório de Biologia Molecular a expressão “Salami Science”. Um de nós estava com uma pilha de trabalhos científicos quando Max Perutz se aproximou. Um jovem disse que estava lendo trabalhos de um famoso cientista dos EUA. Perutz olhou a pilha e murmurou: “Salami Science, espero que não chegue aqui”. Mas a praga se espalhou pelo mundo e agora assola a comunidade científica brasileira.

“Salami Science” é a prática de fatiar uma única descoberta, como um salame, para publicá-la no maior número possível de artigos científicos. O cientista aumenta seu currículo e cria a impressão de que é muito produtivo. O leitor é forçado a juntar as fatias para entender o todo. As revistas ficam abarrotadas. E avaliar um cientista fica mais difícil. Apesar disso, a “Salami Science” se espalhou, induzido pela busca obsessiva de um método quantitativo capaz de avaliar a produção acadêmica.

No Laboratório de Biologia Molecular, nossos ídolos eram os cinco prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos artigos indicava falta de rigor intelectual. Eles valorizavam a capacidade de criar uma maneira engenhosa para destrinchar um problema importante. Aprendíamos que o objetivo era desvendar os mistérios da natureza. Publicar um artigo era consequência de um trabalho financiado com dinheiro público, servia para comunicar a nova descoberta. O trabalho deveria ser simples, claro e didático. O exemplo a ser seguido eram as duas páginas em que Watson e Crick descreveram a estrutura do DNA. Você se tornaria um cientista de respeito se o esforço de uma vida pudesse ser resumido em uma frase: Ele descobriu… Os três pontinhos teriam de ser uma ou duas palavras: a estrutura do DNA (Watson e Crick), a estrutura das proteínas (Max Perutz), a teoria da Relatividade (Einstein). Sabíamos que poucos chegariam lá, mas o importante era ter certeza de que havíamos gasto a vida atrás de algo importante.

Hoje, nas melhores universidade do Brasil, a conversa entre pós-graduandos e cientistas é outra. A maioria está preocupada com quantos trabalhos publicou no último ano – e onde. Querem saber como serão classificados. “Fulano agora é pesquisador 1B no CNPq. Com 8 trabalhos em revistas de alto impacto no ano passado, não poderia ser diferente.” “O departamento de beltrano foi rebaixado para 4 pela Capes. Também, com poucas teses no ano passado e só duas publicações em revistas de baixo impacto…” Não que os olhos dessas pessoas não brilhem quando discutem suas pesquisas, mas o relato de como alguém emplacou um trabalho na Nature causa mais alvoroço que o de uma nova maneira de abordar um problema dito insolúvel.

Essa mudança de cultura ocorreu porque agora os cientistas e suas instituições são avaliados a partir de fórmulas matemáticas que levam em conta três ingredientes, combinados ao gosto do freguês: número de trabalhos publicados, quantas vezes esses trabalhos foram citados na literatura e qualidade das revistas (medida pela quantidade de citações a trabalhos publicados na revista). Você estranhou a ausência de palavras como qualidade, criatividade e originalidade? Se conversar com um burocrata da ciência, ele tentará te explicar como esses índices englobam de maneira objetiva conceitos tão subjetivos. E não adianta argumentar que Einstein, Crick e Perutz teriam sido excluídos por esses critérios. No fundo, essas pessoas acreditam que cientistas desse calibre não podem surgir no Brasil. O resultado é que em algumas pós-graduações da USP o credenciamento de orientadores depende unicamente do total de trabalhos publicados, em outras o pré-requisito para uma tese ser defendida é que um ou mais trabalhos tenham sido aceitos para publicação.

Não há dúvida de que métodos quantitativos são úteis para avaliar um cientista, mas usá-los de modo exclusivo, abdicando da capacidade subjetiva de identificar pessoas talentosas, criativas ou simplesmente geniais, é caminho seguro para excluir da carreira científica as poucas pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes. Essa atitude isenta os responsáveis de tomar e defender decisões. É a covardia intelectual escondida por trás de algoritmos matemáticos.

Mas o que Darwin tem a ver com isso? Foi ele que mostrou que uma das características que facilitam a sobrevivência é a capacidade de se adaptar aos ambientes. E os cientistas são animais como qualquer outro ser humano. Se a regra exige aumentar o número de trabalhos publicados, vou praticar “Salami Science”. É necessário ser muito citado? Sem problema, minhas fatias de salame vão citar umas às outras e vou pedir a amigos que me citem. Em troca, garanto que vou citá-los. As revistas precisam de muitas citações? Basta pedir aos autores que citem artigos da própria revista. E, aos poucos, o objetivo da ciência deixa de ser entender a natureza e passa a ser publicar e ser citado. Se o trabalho é medíocre ou genial, pouco importa. Mas a ciência brasileira vai bem, o número de mestres aumenta, o de trabalhos cresce, assim como as citações. E a cada dia ficamos mais longe de ter cientistas que possam ser descritos em uma única frase: Ele descobriu…

de Fernando Reinach / O Estado de S.Paulo, através de Ciência brasileira adere ao ‘padrão salame’ de produção e avaliação científica

terça-feira, dezembro 03, 2013

Colesterol e conflitos de interesse, por Mateus Dornelles Severo

Recentemente, foram lançados pela Sociedade Brasileira de Cardiologia e pela American Heart Association novas diretrizes para o manejo da dislipidemia. A diretriz brasileira foca em metas de colesterol mais baixas, já a diretriz americana tem uma abordagem baseada no risco do indivíduo em ter eventos cardiovasculares, como enfartes ou isquemias. Em comum, as duas diretrizes têm o potencial de aumentar, e muito, o número de pessoas que precisariam tomar estatinas, isto é, medicação para reduzir o colesterol. Eis a questão!

Apesar dessas “novas regras” terem sido amplamente divulgadas pela mídia e parecerem soar como “boa notícia” para grande parte da população, precisamos manter o olhar crítico. As duas diretrizes, em vários pontos, não vão ao encontro da literatura científica disponível. Isso quer dizer que não são embasadas em dados objetivos, advindos de estudos clínicos bem desenhados, mas, sim, na “opinião de especialistas”. Esse é o problema! Tanto o grupo brasileiro quanto o americano não são suficientemente isentos de conflitos de interesse. Ou seja, muitos dos especialistas responsáveis pela redação dessas diretrizes recebem dinheiro ou outro tipo de suporte da indústria farmacêutica.

As estatinas são ótimos medicamentos para quem tem doença cardiovascular estabelecida. Contudo, conforme dados recentemente publicados na revista médica BMJ, para as pessoas que ainda não tiveram enfarte ou isquemia e têm risco menor de 20% em 10 anos de tê-los, as estatinas falham em reduzir o risco de morte e tem um custo-benefício questionável, já que pelo menos 140 pessoas precisam ser tratadas para prevenir um evento. Além disso, 18% dos usuários de estatina apresentam efeitos, como dores musculares e fraqueza, diabetes mellitus, catarata, problemas de ereção e diminuição da capacidade cognitiva.

Outro agravante são os métodos utilizados para estimar o risco. Como as calculadoras de risco foram desenvolvidas em momento histórico diferente, mostram um risco falsamente alto, o que acaba por “criar” mais pessoas doentes.

Não é apenas opinião pessoal. Existe grande debate. Dados americanos estimam crescimento potencial de 70% na prescrição de estatinas para pessoas saudáveis após a divulgação das diretrizes. E o grande beneficiário não será você que lê este texto, mas a indústria farmacêutica, além de alguns poucos formadores de opinião. Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 80% do risco de eventos cardiovasculares se deve ao fumo, ao sedentarismo e à alimentação inapropriada. Então, antes de procurar por uma “bala mágica”, mude seus hábitos. Seu coração agradece!

Fonte: Diário de Santa Maria

Parecer sobre Declaração de Interesse e Conflito de Interesses em Saúde e Investigação Biomédica - Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida de Portugal

Foi tornado público em julho deste ano Parecer que inclui as seguintes questões:

1. As declarações de interesse de todos os intervenientes relevantes na área das ciências da vida e da saúde (incluindo sociedades científicas, associações profissionais, associações de doentes e jornalistas na área da saúde) devem ser obrigatórias, enquanto instrumento que realiza o princípio da responsabilidade, a pública prestação de contas e a transparência do exercício profissional.

2. Quem realiza, autoriza ou avalia estudos, trabalhos, projetos, dissertações, bem como instituições de ensino e investigação ou ciclos de estudo, deve igualmente fazer declarações de interesses.

3. Tais declarações devem ser atualizadas sempre que se verifique o patrocínio: a) de qualquer intervenção/comunicação científica pública (oral ou escrita); b) de qualquer reportagem, notícia ou artigo de opinião sobre saúde ou investigação científica, na imprensa científica ou outra.

4. Os profissionais de saúde:
a) devem recusar ofertas de valor significativo (a definir por lei), sem prejuízo do legítimo pagamento de serviços prestados por parte de empresas ou entidades com interesses relevantes na área da saúde; b) não devem fazer apresentações públicas ou publicar artigos científicos que beneficiem indevidamente a indústria, que sejam por ela condicionados ou contenham partes substanciais redigidas por quem não é identificado como autor ou não seja, como tal, devidamente reconhecido; c) devem recusar a prestação de serviços de consultoria que não sejam baseados em contratos escritos.

5. As declarações de interesses devem ser públicas, estando facilmente acessíveis na página eletrónica da(s) instituição(ões) de saúde, de ensino ou de investigação em causa.

6. Os profissionais de saúde ou investigadores que tenham participado na promoção de qualquer método, procedimento, dispositivo ou fármaco que a evidência científica venha a revelar ineficiente ou desadequado têm a obrigação moral de se empenhar na divulgação desta informação.

7. A participação na formação pós-graduada deve ser feita de forma institucional de acordo com os interesses profissionais e áreas de afinidade dos investigadores e profissionais de saúde.

8. As instituições de ensino superior e investigação (faculdades de medicina, escolas na área das ciências da vida e da saúde, biomedicina e biotecnologia) devem estabelecer regras de conduta para os seus docentes e investigadores e incluir no seu curriculum formal unidades curriculares que permitam aos estudantes adquirir competências nesta área.

9. Todos os investigadores que submetam artigos e apresentem comunicações com o patrocínio da indústria, ou de qualquer outro mecenas ou financiador, devem referir o respetivo apoio no artigo, na apresentação ou no material de divulgação científica em questão.

10. As declarações de interesses dos investigadores na área clínica devem ser incluídas na informação prestada ao sujeito do estudo para efeitos de consentimento informado livre e esclarecido.

11. Tratando-se de declarações de interesse que envolvam quantias financeiras (subsídios, bolsas, viagens, alojamento, consultadoria, pagamentos), devem as mesmas ser detalhadas e do conhecimento da direção/presidência da respetiva instituição.

12. Previamente à realização de estudos e à avaliação de projetos e resultados dos mesmos, deve ser feita declaração de interesses detalhada (listando todos os potenciais interesses financeiros e não-financeiros relevantes).

13. As reitorias, as direções académicas, as direções dos centros de investigação (públicos e privados) e as direções hospitalares devem ter particular cuidado para que seja manifesto nos seus relatórios de contas ou de atividades as ações de mecenato de que beneficiem.

14. Nas instituições universitárias e de investigação deve existir uma declaração de interesses sempre que estas possuam interesses financeiros em empresas incubadas no espaço da mesma.

15. Os profissionais de saúde que exerceram cargos de direção na área da saúde na gestão pública e que exerceram atividade em instituição privadas devem facultar uma declaração de interesses antes da sua nomeação.

16. Em princípio, quem ocupe cargos de direção nas áreas da saúde não deve acumular outros cargos de direção na mesma ou noutras instituições de saúde (ou a elas associadas). E, bem assim, quem seja responsável pela gestão da carreira de familiares diretos que lhe estejam subordinados, deve, tanto quanto possível e com bom senso, evitar tais situações.

17. Os membros de grupos de trabalho que elaboram normas de orientação clínica, assim como os membros de comissões, júris de procedimentos pré-contratuais e os consultores que apoiam os respetivos júris ou que participam na escolha, avaliação, emissão de orientações na área do medicamento e do dispositivo médico no âmbito dos estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde, bem como de outros serviços do Ministério da Saúde, devem tornar públicas as respetivas declarações de interesse. Na constituição destes grupos deve garantir-se:
a) que entre os seus membros exista uma maioria de elementos sem conflito de interesse; b) que o seu presidente não esteja em situação de conflito de interesses; c) a exclusão de elementos que tenham relações financeiras e/ou comerciais com empresas que produzam fármacos ou dispositivos que possam ser afetados pelas normas a produzir; d) a divulgação pública da declaração de interesses.

18. A política de gestão da instituição no que respeita ao pagamento de prémios e incentivos, incluindo a avaliação e os serviços contratualizados, deve ser devidamente publicitada.

19. Devem ser elaboradas e divulgadas “Normas de Orientação” e formulários em sítios de instituições e agências relevantes para investigação em Ciências da Vida, como o Ministério da Saúde ou o Ministério da Educação e Ciência, procurando homogeneização e coerência, sempre que possível numa perspetiva europeia.

20. Os membros das Comissões de Ética devem, em cada reunião, fazer a respetiva declaração de interesses relativamente aos pontos da ordem de trabalho prevista, não devendo participar na discussão e votação desses pontos.

21. A análise e gestão das declarações devem fazer parte do trabalho das Comissões de Ética institucionais.

22. A veracidade e completude das declarações podem ser verificadas por uma entidade eventualmente criada para o efeito.

23. Declarações de interesse falsas ou incompletas devem ser objeto de sanção. Do mesmo modo, o não cumprimento do dever de recusa em participar em decisão sobre a qual tenha conflito de interesses deve também ser objeto de sanção.

Pode ler este documento na íntegra aqui.

Fonte: Blog Falemos de Saúde... e não só!, de Jorge Cruz, Portugal

segunda-feira, dezembro 02, 2013

A agonia do colesterol, por Drauzio Varella

Nunca me convenci de que essa obsessão para abaixar o colesterol às custas de remédio aumentasse a longevidade de pessoas saudáveis.

Essa crença - que fez das estatinas o maior sucesso comercial da história da medicina - tomou conta da cardiologia a partir de dois estudos observacionais: Seven Cities e Framingham, iniciados nos anos 1950.

Considerados tendenciosos por vários especialistas, o Seven Cities pretendeu demonstrar que os ataques cardíacos estariam ligados ao consumo de gordura animal, enquanto o Framingham concluiu que eles guardariam relação direta com o colesterol.

A partir dos anos 1980, o aparecimento das estatinas (drogas que reduzem os níveis de colesterol) abafou as vozes discordantes, e a classe médica foi tomada por um furor anticolesterol que contagiou a população. Hoje, todos se preocupam com os alimentos gordurosos e tratam com intimidade o "bom" (HDL) e o "mau" colesterol (LDL).

As diretrizes americanas publicadas em 2001 recomendavam manter o LDL abaixo de cem a qualquer preço. Ainda que fosse preciso quadruplicar a dose de estatina ou combiná-la com outras drogas, sem nenhuma evidência científica que justificasse tal conduta.

Apenas nos Estados Unidos, esse alvo absolutamente arbitrário fez o número de usuários de estatinas saltar de 13 milhões para 36 milhões. Nenhum estudo posterior, patrocinado ou não pela indústria, conseguiu demonstrar que essa estratégia fez cair a mortalidade por doença cardiovascular.

Cardiologistas radicais foram mais longe: o LDL deveria ser mantido abaixo de 70, alvo inacessível a mortais como você e eu. Seríamos tantos os candidatos ao tratamento, que sairia mais barato acrescentar estatina ao suprimento de água domiciliar, conforme sugeriu um eminente professor americano.

Pois bem. Depois de cinco anos de análises dos estudos mais recentes, a American Heart Association e a American College of Cardiology, entidades sem fins lucrativos, mas que recebem auxílios generosos da indústria farmacêutica, atualizaram as diretrizes de 2001.

Pasme, leitor de inteligência mediana como eu. Segundo elas, os níveis de colesterol não interessam mais.

Portanto, se seu LDL é alto não fique aflito para reduzi-lo: o risco de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral não será modificado. Em português mais claro, esqueça tudo o que foi dito nos últimos 30 anos.

A indústria não sofrerá prejuízos, no entanto: as estatinas devem até ampliar sua participação no mercado. Agora serão prescritas para a multidão daqueles com mais de 7,5% de chance de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral nos dez anos seguintes, risco calculado a partir de uma fórmula nova que já recebe críticas dos especialistas.

Se reduzir os níveis de colesterol não confere proteção, por que insistir nas estatinas? Porque elas têm ações anti-inflamatórias e estabilizadoras das placas de aterosclerose, que podem dificultar o desprendimento de coágulos capazes de obstruir artérias menores.

O argumento é consistente, mas qual o custo-benefício?

Recém-publicado no "British Medical Journal", um artigo baseado nos mesmos estudos avaliados pelas diretrizes mostrou que naqueles com menos de 20% de risco em dez anos as estatinas não reduzem o número de mortes nem de eventos mais graves. Nesse grupo seria necessário tratar 140 pessoas para evitar um caso de infarto do miocárdio ou de derrame cerebral não fatais.

Ou seja, 139 tomarão inutilmente medicamentos caros que em até 20% dos casos podem provocar dores musculares, problemas gastrointestinais, distúrbios de sono e de memória e disfunção erétil.

A indicação de estatina no diabetes e para quem já sofreu ataque cardíaco, por enquanto, resiste às críticas.

Se você, leitor com boa saúde, toma remédio para o colesterol, converse com seu médico, mas esteja certo de que ele conhece a literatura e leu com espírito crítico as 32 páginas das novas diretrizes citadas nesta coluna.

Preste atenção: mais de 80% dos ataques cardíacos ocorrem por conta do cigarro, vida sedentária, obesidade, pressão alta e diabetes. Imaginar ser possível evitá-los sentado na poltrona, às custas de uma pílula para abaixar o colesterol, é pensamento mágico.

Fonte: Folha de S. Paulo

quarta-feira, novembro 27, 2013

A complexidade dos conflitos de interesse na saúde e os desafios decorrentes

Artigo em Saúde Web

Aproveito aqui para divulgar ainda artigo que saiu apenas após a publicação do texto original, e que ajuda a ilustrar esta "maior complexidade":

Yeh JS, Kesselheim AS (2013) Same Song, Different Audience: Pharmaceutical Promotion Targeting Non-Physician Health Care Providers. PLoS Med 10(11): e1001560. doi:10.1371/journal.pmed.1001560

quarta-feira, novembro 20, 2013

Projeto de lei aprovado na Câmara libera venda de remédios para emagrecer

Na contramão do que definiu a a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a Câmara dos Deputados aprovou ontem (19) um projeto de lei que autoriza a produção e venda de remédios para emagrecer.

A proposta se refere a medicamentos feitos a partir de substâncias como sibutramina, anfepramona, femproporex e mazindol.

Os últimos três, do grupo das anfetaminas, foram proibidos em outubro de 2011, por determinação da Anvisa, que entendeu não haver comprovação da eficácia e que o risco do seu uso supera o benefício. A sibutramina foi mantida no mercado, mas com restrições.

A proposta foi aprovada em caráter terminativo pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara e, se não receber recurso para ser votado em cinco dias pelo plenário, segue para votação no Senado.

O texto original da proposta apresentada pelo deputado Felipe Bornier (PSD-RJ) queria proibir a Anvisa de atuar na regulamentação desse setor, mas os deputados entenderam que a medida poderia ser inconstitucional e preferiram liberar a comercialização sob prescrição médica.

Relator da matéria, o deputado Sergio Zveiter (PSD-RJ), votou pela constitucionalidade da proposta. "Entendo que, em vez de proibir-se a Anvisa de vetar a produção e comercialização dos anorexígenos enumerados, como previa o projeto original, a solução mais certa é autorizar diretamente, por meio de projeto de lei, a produção, comercialização e consumo, sob prescrição médica".

Dias depois da decisão que baniu parte dos emagrecedores e instituiu regras mais rígidas para o uso da sibutramina, em 2011, o diretor-presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, classificou a venda dos inibidores no Brasil como "abusiva, muito alta, só crescente".

A restrição ao uso dos inibidores de apetite foi duramente criticada por entidades médicas.

Procurada sobre a aprovação na Câmara, a Anvisa afirmou que não se manifestaria.

Fonte: Folha de São Paulo

domingo, novembro 17, 2013

Guideline ACC/AHA sobre Colesterol: The Good, the Bad and the Ugly

Até que o guideline estava indo bem, quando em um determinado momento passou a seguir um curso inexplicável. Abandonar meta de colesterol fazia sentido, mas por que abandonar o valor basal do colesterol como guia para início da terapia? ... Não podemos deixar de pensar que neste momento prevaleceu conflitos de interesse de especialistas (ACC/AHA) a favor das estatinas, conflitos estes apontados no próprio guideline [LEIA MAIS EM MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS].

domingo, novembro 03, 2013

O Mito do Tratamento da Hipertensão Leve

É mais barato fazer uns simpósios, pagar umas passagens internacionais, e convencer os que se acham formadores de opinião (mas são meras marionetes) de que devemos tratar hipertensão leve. São estas mesmas marionetes que mais tarde se reunirão para escrever os guidelines de hipertensão. No fundo, temos que tirar o chapéu para a inteligência da indústria farmacêutica. Eles nos tiram de letra [LEIA O TEXTO NA ÍNTEGRA EM MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS].

sábado, outubro 26, 2013

Participe de nosso grupo de discussão no Face


Lembramos que valem as mesmas regras estabelecidas para o Blog. Há um foco bem estabelecido para a discussão, e partimos da premissa de que é suficiente.

Os editores exortam os interessados a se absterem de misturar pautas políticas ou ideológicas com os temas em discussão. Tem sido freqüente a instrumentalização desse debate por ativismos de todo tipo (anti-capitalismo, anti-Medicina, anti-medicações, anti-psiquiatria, e suas contrapartes), produzindo um cenário confuso, que inviabiliza a construção de um espaço de “ética possível”, como se houvesse uma condição ideal a priori da qual não se pode abrir mão. Nosso pressuposto é de que a ética das relações humanas é uma construção histórica e social, portanto é possível sua existência em qualquer tempo, lugar ou sistema econômico. Leia mais sobre nossos princípios editoriais ao lado.

quarta-feira, outubro 23, 2013

Saraiva Felipe afirma ser despachante de laboratório farmacêutico

Ex-ministro da Saúde, a quem pude conhecer pessoalmente em 2005 (foto abaixo), está envolvido em denúncia grave que nasce de conflitos de interesse com laboratórios.


Por Gabriel Mascarenhas – Veja

O deputado federal Saraiva Felipe (PMDB-MG) foi ministro da Saúde de Lula entre 2005 e 2006. Nenhuma realização significativa marcou sua passagem pelo cargo. Para Saraiva, no entanto, não foi um tempo perdido. Incorporou contatos valiosos que fez na burocracia – e os tornou rentáveis, segundo ele mesmo diz. Presidente do PMDB mineiro, Saraiva transformou seu quinto mandato num dos mais chocantes balcões de negócios de que se tem notícia. Seu foco de atuação é a indústria farmacêutica.

“VEJA” teve acesso a uma gravação em que Saraiva, com toda a sem-cerimônia possível, abre o jogo a um interlocutor que o procurou, supostamente, para que ele ajudasse um laboratório que queria fornecer medicamentos para o Programa Farmácia Popular: “Tem dois tipos (de trabalho): ‘Você me ajuda e, se der certo, eu te dou não sei o quê; e a outra forma é como eu trabalho para a Interfarma e a Hypermarcas: ‘Nós damos uma ajuda mensal e você, diante das demandas, encaminha aqui e ali”. Numa palavra, Saraiva assume sem meias palavras que topa um mensalão.

A gravação, feita em Belo Horizonte, é de fevereiro deste ano. Nela, Saraiva promete ao interlocutor, que se apresentou como emissário de um grande laboratório, abrir as portas do Ministério da Saúde e da Anvisa. Em relação à agência reguladora, jacta-se quando fala do diretor-presidente: “O Dirceu Barbano me ajuda muito. Tenho bom acesso a ele”. Cita como clientes dois grandes laboratórios (Hypermarcas e Cristália) e uma entidade de classe, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). Ao propagandear seus serviços, porém, deixa claro que sua carteira de clientes é ampla: “Não sou de empresa nenhuma. Sou despachante”.

Os 34 minutos de gravação mostram um caso impressionante de desfaçatez. Em bom português, ele pede propina em troca de favores que garante conseguir. Procurado, Saraiva reconhece ser sua voz na gravação. Ainda assim, nega que tenha dito o que está gravado: “Isso não existe. Não recebo nada”. 

O que é incontestável no áudio é que o deputado se autoincrimina. Há que ter cuidado, porém, em relação aos citados por ele, sejam empresas, sejam autoridades do governo – só uma investigação poderá confirmar o que foi dito. Saraiva pode estar vendendo gato por lebre e usando o nome dos outros para fechar negócios. A Hypermarcas nega “veementemente quaisquer alegações que objetivem atingir a reputação da companhia”. Da mesma forma, Antônio Britto, presidente-executivo da Interfarma, afirma não ter feito “em qualquer tempo, a quem quer que seja, ou por qualquer motivo, pagamento algum para defesa de suas posições junto às autoridades”. A Anvisa diz que “atende com atenção e seriedade os pleitos encaminhados pelo Legislativo” e completa: “o mesmo se aplica em relação ao deputado Saraiva Felipe”. O laboratório Cristália não se pronunciou.

É legítimo que um parlamentar trabalhe em favor de um setor – a Interfarma e o Cristália, aliás, são doadores de fundos para a eleição de Saraiva, com 150 000 reais e 80 000 reais, respectivamente. Mais do que isso: é desejável que segmentos da sociedade, sejam eles sindicatos de trabalhadores, minorias ou setores produtivos, tenham porta-vozes no Congresso defendendo seus interesses. Assim funcionam as democracias. O que é inadmissível é um deputado mercadejar seu mandato de forma tão despudorada.

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É desalentador ver que a diretora da ANVISA da época está agora na Interfarma, bem como o fato que os anos de Saraiva Felipe no MS foram tempos de dedo na cara dos médicos, acusados de desumanos e de apenas atuarem por dinheiro, servindo primariamente aos interesses de grandes corporações. 

terça-feira, outubro 15, 2013

Luis Cláudio Correa, editor do Blog, palestrará no I Congresso Internacional sobre Segurança do Paciente

Luis Cláudio palestrou recentemente no congresso Safety e o presidente do ISMP Brasil estava na platéia no momento de sua apresentação. Pelo jeito, gostou...

Fomos convidados para discutir excessos diagnósticos/terapêuticos e o impacto na segurança do paciente em mais este importante evento:



Medicina Defensiva

Artigo aborda outros elementos da complexa equação que culmina no uso irracional de medicamentos e tecnologias, principalmente a judicialização da Medicina, mas também a formação profissional precária, a falta de condições de trabalho e o desgaste da relação médico-paciente.

segunda-feira, outubro 14, 2013

Como o entendimento de organizações em geral poderia ajudar na melhoria das médicas

Segundo o material em anexo, "as organizações precisam buscar meios para analisar não apenas a capacidade técnica e intelectual dos seus profissionais, mas também a capacidade de discernimento e a capacidade de resistência a pressões situacionais quando diante de dilemas éticos que podem sofrer ao longo de suas atividades". Escancara que, apesar de ética ser, na visão simplória do problema, um único caminho a trilhar e o contrário do anti-ético, no mundo real, isto é questão muito mais complexa e movediça. Pesquisa escancara contradições naturais do comportamento humano e, no documento, algumas formas de gerenciar o problema são sugeridas.

Leia o material na íntegra

Não tenho vergonha de responder que já me comportei ou correria risco de cair no "vermelho" em alguns elementos da pesquisa...

quinta-feira, outubro 10, 2013

A banalização das doenças

* Artigo publicado no Jornal A Tarde por Luis Correia, direcionado, então, não somente para profissionais da saúde

Em meados do século XX, a evolução tecnológica e científica nos trouxe tratamentos de grande relevância. Antes disso, a maioria das condutas eram empíricas e inefetivas. Fazíamos uma medicina que tentava apenas reduzir o sofrimento ou proporcionar a falsa idéia de que algo benéfico estava sendo utilizado. No início do século passado, não havia antibióticos, anti-hipertensivos, medicamentos para baixar colesterol ou marca-passos.

Esta fase foi seguida de uma grande evolução nos últimos 50 anos, tirando a medicina de um estágio medieval para uma prática efetiva e embasada em evidências. Neste contexto, o primeiro ensaio clínico publicado (British Medical Journal) data de 1948, quando se comprovou pela primeira vez que um antibiótico (estreptomicina) reduzia significativamente a mortalidade de pacientes com tuberculose, quando comparado ao tratamento limitado ao repouso. Começava a era da medicina baseada em evidências.

Por outro lado, no início do século XXI, passamos a experimentar outro fenômeno: a medicalização da população. O principal mecanismo criador da medicalização são as novas definições de doença, caracterizadas pela redução dos limites de referência do que antes considerávamos normal. É comum que a redução destes limites ocorra sem o devido embasamento científico, sendo mais motivados pelo afã de prevenir doenças, ou por conflitos de interesses. Isto faz com que, do dia para a noite, surjam populações inteiras de novos doentes, antes considerados normais.

Há alguns anos, diabetes era definido como glicemia de 140 mg/dl, depois esta definição foi reduzida para 125 mg/dl e agora já se considera que glicemia de 100 mg/dl não é normal, criando-se o conceito de pré-diabetes. Embora o conceito de pré-diabetes tenha certo valor, este tem sido inadequadamente utilizado para justificar uso de medicações, sem base científica suficiente. Temos também o advento da pré-hipertensão, rótulo que já cabe a pessoas com pressão arterial de 120 x 80 mmHg. Está cada vez mais difícil ser normal.

A primeira vista, isto pode ser interpretado como uma conduta cuidadosa, típica do paradigma preventivo de que é melhor se preocupar antes que o problema se torne uma questão mais grave. No entanto, esta conduta representa mais uma forma de overdiagnosis. Em paralelo ao afrouxamento da definição das doenças, a indústria farmacêutica realiza estudos de má qualidade, que tentam demonstrar benefício do uso de medicamentos nestas condições. Estes que mostram resultados insuficientes, que são “vendidos” de forma sedutora, levando à adoção de terapias desnecessárias. Assim surge o overtreatment.

Recentemente, o Jornal Nacional noticiou que os médicos agora consideram que o valor ideal de colesterol LDL (colesterol ruim) é 70 mg/dl. Porém, a média de LDL-colesterol na população é 120 mg/dl, sendo muito difícil que uma pessoa saudável tenha colesterol LDL de 70 mg/dl. Desta forma, um grande número de pessoas, antes definidas como portadores de colesterol adequado, agora estão insatisfeitas com seu colesterol. Como dieta reduz apenas 5-10% e exercício não tem impacto algum, restará apenas medicação para que as pessoas tenham um ótimo colesterol. De posse dessas novas definições, se inicia o marketing simulteamente voltado para médicos e pacientes. Um marketing efetivo, pois quem não quer ter colesterol ótimo?

Tudo isso ocorre em detrimento de uma escolha conscienciosa e científica, tal como proposto pela medicina baseada em evidências. Está mais para medicina baseada em fantasia, uma lucrativa fantasia.

Por outro lado, precisamos lembrar que verdadeiros fatores de risco, como colesterol elevado, diabetes e hipertensão, não devem ser negligenciados, necessitando de tratamento na maioria das vezes com medicação. Nestes casos, existe comprovação científica de benefício.

Diagnóstico e tratamento são as ações primordiais da prática médica e devem ser feitos para quem precisa, na hora que se precisa e com criterioso embasamento científico.

sexta-feira, outubro 04, 2013

Integridade científica em cheque: Estudo falso é aceito para publicação em mais de 150 revistas

por Herton Escobar

Imagine só o seguinte experimento: Você escreve um trabalho científico falso, baseado em dados falsos, obtidos de experimentos sem validade científica, assinado com nomes falsos de pesquisadores que não existem, associados a universidades que também não existem, e envia esse trabalho para centenas de revistas científicas do tipo “open access” (que disponibilizam seu conteúdo gratuitamente na internet) para publicação. O que você acha que aconteceria?

Pois bem, um biólogo-jornalista norte-americano chamado John Bohannon fez exatamente isso e os resultados, publicados hoje pela revista Science, são aterradores (para aqueles que se preocupam com a credibilidade da ciência): ele escreveu um trabalho falso sobre as propriedades anticancerígenas de uma molécula supostamente extraída de um líquen e enviou esse trabalho para 304 revistas científicas de acesso aberto ao redor do mundo. Não só o trabalho era totalmente fabricado e obviamente incorreto, mas o nome do autor principal (Ocorrafoo Cobange) e da sua instituição (Wassee Institute of Medicine) eram fictícios. Apesar disso (pasmem!), mais da metade das revistas procuradas (157) aceitou o trabalho para publicação. Um escândalo.

O que isso quer dizer? Quer dizer que tem muita revista “científica” por aí que não é “científica” coisíssima nenhuma. E que o fato de um estudo ter sido publicado não significa que ele esteja correto (pior, não significa nem mesmo que ele seja verdadeiro para começo de conversa). A ciência, assim como qualquer outra atividade humana, infelizmente não está isenta de falcatruas.

E o que isso não quer dizer? Não quer dizer que o sistema de open access seja intrinsecamente falho ou inválido. Certamente há revistas de acesso livre de ótima qualidade, como as do grupo PLoS, assim como há revistas pagas de baixa qualidade que publicam qualquer porcaria. Nenhum sistema é perfeito. Até mesmo a Science publica umas lorotas de vez em quando, assim como a Nature e outras revistas de alto impacto, que empregam os critérios mais rígidos de seleção e revisão. Além disso, o fato de uma revista ser gratuita não significa que ela não tenha revisão por pares (peer review) e outros filtros de qualidade. Assim, o que deve ser questionado não é a forma de disponibilizar a informação, mas a forma como ela é selecionada e apurada — em outras palavras, a qualidade e a confiabilidade da informação, não o seu preço.

O relato de Bohannon acaba de ser publicado no site da Science, dentro de um pacote de artigos intitulado Comunicação na Ciência: Pressões e Predadores.

Nessa mesma temática, a revista Nature publicou recentemente também uma reportagem sobre o escândalo envolvendo quatro revistas científicas brasileiras que foram flagradas praticando citações cruzadas — ou “empilhamento de citações”, em inglês –, esquema pelo qual uma revista cita a outra propositadamente diversas vezes, como forma de aumentar seu fator de impacto (e, consequentemente, o prestígio dos pesquisadores que nelas publicam). As revistas são Clinics, Revista da Associação Médica Brasileira, Jornal Brasileiro de Pneumologia e Acta Ortopédica Brasileira.

O esquema foi descoberto pela empresa Thomson Reuters, maior referência internacional na produção de estatísticas de publicação e citações científicas. Como punição, as quatro revistas tiveram seu fator de impacto suspenso por um ano.

Fonte: http://blogs.estadao.com.br/herton-escobar/estudo-falso-e-aceito-para-publicacao-em-mais-de-150-revistas/

segunda-feira, setembro 23, 2013

Há exatos 7 anos: Bob Goodman, de No Free Lunch, esteve no Rio Grande do Sul


É olhando para trás que percebo o significado deste humilde projeto. Colaboradores já desistiram, outros surgiram. Na época do evento da foto, que ajudei a organizar, não havia ainda um movimento organizado para discutir o assunto. No seguimento, já fomos a Campanha Alerta, praticamente abandonada e com o seu site, no exato momento, inclusive hackeado e bizarro. Outros palestrantes internacionais já vieram após, especialmente para falar sobre o complexo relacionamento entre médicos e indústrias farmacêuticas, como Edwin Gale (entrevista, palestra). Expusemos, ao longo deste tempo, quase uma década, centenas de profissionais da saúde ao problema, através de palestras, oficinas, campanhas ou artigos. Nossa mais recente participação foi em julho, no Safety2013, Rio de Janeiro.

Alguns parceiros já caíram em armadilhas, por antes criticar radicalmente e, a partir do próprio envolvimento com a indústria, acreditar que tudo que se dizia (e que eles próprios diziam) era importante para pessoas "permeáveis", e que então fariam diferente.

Bob Goodman (da foto) já abandonou o projeto No free Lunch, entregando para o pessoal do Healthy Skepticism.

Ainda guardo suas apresentações de 2006:

Bob Goodman Part I: http://bit.ly/nVLuSq
Part II: http://bit.ly/oIFDEn

É possível que somente possam ser vistas com Internet Explorer.

domingo, setembro 22, 2013

Less is More versus More is More

Divulgo texto. São pessoas como o autor Luis, indivíduos "com tempo" para fazer estas coisas (uma franca provocação à desculpa da falta de), que me fazem seguir acreditando na Medicina. Pessoas que pensam, certo ou errado - mas coisa linda o simples ato de pensar [mais] livre, solto... Às vezes erra então, no momento ou na antecipação. E várias não ajuda muito, como quando critica aquilo que traria conforto (há algo mais inquietante para a mente e o coração do que a dúvida???) e não tem respostas definitivas para dar...

quinta-feira, setembro 12, 2013

Entrevista de Viomundo com Adriane Fugh-Berman

Viomundo – Como, quando e por que você lançou o blog Pharmedout, da Universidade Georgetown, do qual é diretora?

AFB – Originalmente, fomos financiados com dinheiro de uma punição. A Warner Lambert, que era uma subsidiária da Pfizer, foi processada pelos 50 estados americanos mais o Distrito de Columbia por causa da propaganda de um composto que aqui nos EUA se chama Gabapentin. É um remédio para convulsões, para epilepsia, que estava sendo vendido e promovido como sendo um remédio para depressão e bipolaridade, dor muscular, tudo… Houve um acordo na justiça a respeito da propaganda ilegal desse remédio. Os procuradores estaduais decidiram usar parte do [dinheiro do] acordo para financiar esforços de educação de médicos e do público a respeito das propagandas da indústria farmacêutica. Acho que eles financiaram 26 centros médicos universitários para criar modelos educativos. Nós recebemos financiamento por dois anos e tivemos melhores resultados do que os outros projetos e somos o único projeto que continua sobrevivendo. Ao menos dos que não existiam antes disso. Existem uns dois que já funcionavam antes. Eu venho de um ativismo na área de saúde. Trabalhei com um grupo chamado Rede de Saúde da Mulher que não recebe dinheiro algum da indústria e já tinha experiência com essa história de tentar promover mudança social sem ter orçamento… Produzimos vídeos com gente que trabalhou na indústria, escrevemos análises de artigos acadêmicos, divulgamos material educacional na internet e não recebemos mais dinheiro desde 2008.

Viomundo – Como estão sobrevivendo?

AFB – Estamos sobrevivendo de doações individuais e organizamos uma conferência todo ano. Pedimos algum dinheiro para a escola e cobramos uma taxa de inscrição, apesar de deixarmos todo mundo que não tem dinheiro entrar de graça porque tem muitos estudantes e eles não pagam nada, por exemplo. Levantamos um pouquinho de dinheiro com a conferência e algumas doações da escola. Por exemplo, a verba para estudar a relação entre cirurgiões e representantes dos fabricantes de material cirúrgico que ficam dentro da sala de operações ajudando os cirurgiões e ninguém sabe nada a respeito dessas relações e como começaram. Ganhamos um dinheiro do departamento de filosofia da Georgetown para essa pesquisa. Mas a maior parte da nossa verba vem de contribuições individuais. Temos apenas um funcionário remunerado. Eu não ganho nada do projeto e temos voluntários. Quando o dinheiro acabou, em 2008, ninguém saiu. Todo mundo ficou no projeto. E continuaram fazendo trabalho voluntário nos últimos cinco anos.

Viomundo – Em um de seus artigos você diz que a indústria farmacêutica promove doenças e não apenas a venda de remédios. Você pode explicar e dar exemplos do que está falando?

AFB – Existe um número maior de pessoas saudáveis do que de pessoas doentes no mundo e é importante para a indústria fazer com que as pessoas que são totalmente saudáveis pensem que são doentes. Existem muitas maneiras de se fazer isso. Uma delas é mudar o padrão do que caracteriza uma doença. Essa é uma área muito vasta e interessante. O padrão para diagnóstico de pressão alta e diabetes e colesterol alto caiu ao longo dos anos.

Viomundo – Para incluir mais gente nessas categorias de doentes?

AFB – Exatamente. Quando eu estava na escola de medicina, uma pressão de 12 por 8 era considerada perfeita. Era o alvo. E agora é considerada pré-hipertensão.

Viomundo – Como aconteceu essa mudança?

AFB – Existem comitês que fazem as recomendações para essas mudanças e eles estão cheios de gente que recebe dinheiro das grandes empresas farmacêuticas. Por exemplo, o Programa Nacional de Educação sobre o Colesterol é supostamente independente e assessora o governo a respeito da maneira de administrar o colesterol. O comitê que decidiu reduzir as metas tinha uma única pessoa com menos de três conflitos de interesse com os fabricantes de remédios de colesterol. Não sei nem se era zero, mas menos de três! Obviamente, qualquer pessoa tomando decisões a respeito de remédios para um hospital ou um país não deve ter nenhum conflito de interesse com nenhum fabricante de remédios. Outra forma de fazer com que pessoas saudáveis pensem que são doentes é expandir a categoria da doença ou até mesmo criar doenças. Por exemplo, síndrome das pernas inquietas. É uma doença real, neurológica, raríssima. Mas foi redefinida de forma que se você está agitado durante a noite, pode ser diagnosticado com essa doença. Outro exemplo é a doença da ansiedade social. É bom notar que a psiquiatria é a profissão mais suscetível a diagnósticos questionáveis porque todos os diagnósticos são subjetivos. Dependem muito da cultura e não existe nenhuma prova, nenhum exame para comprovar a existência da doença. Por isso é um alvo. Uma das categorias que talvez tenha sido criada é essa doença da ansiedade social que antes chamávamos de vergonha. Outra que foi criada é osteopenia, ou baixa massa óssea, que agora é considerada precursora da osteoporose e a osteoporose é apenas um fator de risco. Não é uma doença, é uma indicação de risco para quedas e fratura de ossos. Então a osteoporose é um fator de risco para um fator de risco de uma doença. E a osteopenia é um fator de risco para um fator de risco para um fator de risco.

Viomundo – E eu aposto que existe um remédio para isso…

AFB – Claro. E os remédios mais usados podem aumentar o risco de fraturas se forem tomados por mais de cinco anos! O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) também seria um exemplo de algo que existe, mas agora qualquer criança que não se comporta na sala de aula é diagnosticada com TDAH e medicada. Existe também um esforço para classificar o vício em nicotina como uma doença porque as empresas que vendem produtos para ajudar a parar de fumar… as empresas de seguro de saúde só cobrem os gastos com esses produtos por dois meses porque eles devem te ajudar a parar de fumar. Depois de dois meses você parou de fumar e pronto. Mas existe um movimento das empresas que fabricam esses produtos para classificar esse vício como uma doença para que os seguros cubram o custo do uso desses produtos pelo resto da vida. Assim, eles tentam provar para os fumantes que eles não podem parar e que é melhor substituir o cigarro por um desses produtos. Talvez seja melhor mesmo usar um substituto da nicotina do que fumar, mas quem está tomando essa decisão são as empresas farmacêuticas que usam formadores de opinião na comunidade médica. E essas decisões não são baseadas em ciência. São tomadas apenas porque empresas biomédicas poderosas garantem que as opiniões que são favoráveis a elas calem as opiniões contrárias. Metade das pessoas que consegue eliminar o cigarro com sucesso simplesmente param de fumar. E a indústria farmacêutica odeia isso. Quer fazer com que as pessoas acreditem que necessitam da ajuda dela. E que não podem parar sozinhas ou talvez não possam nunca parar. É um recado horrível não somente para os consumidores, mas para os profissionais de saúde dizer: “Seus pacientes não conseguem parar de fumar”. Porque isso é o que você tenta primeiro. Se isso não funcionar, então você usa um substituto. Mas alguns desses produtos também têm efeitos adversos.

Viomundo – Você diria que no fim do dia o dinheiro é a causa de todos esses problemas? A ganância?

AFB – Acho que o mais importante é separar a indústria farmacêutica da educação, da regulamentação e das decisões a respeito de que remédios e tratamentos devem ser cobertos. Não se pode permitir que a indústria se envolva com a educação, que influencie a regulamentação e participe dos comitês que decidem que remédios são cobertos. Eles podem apresentar argumentos e, se tiverem informações, podem apresentar para o comitê. Mas as pessoas que participam desses comitês não podem ter conflitos de interesse. E uma das armadilhas é o seguinte conceito: “Eu não tenho conflito de interesses com essas empresas em particular”. Se estou avaliando um remédio, talvez eu tenha uma relação com a empresa B, mas estamos avaliando um produto da empresa A. Então não é um conflito de interesse. Isso é uma tremenda armadilha por vários motivos. Um deles é que promover um remédio é muito mais do que divulgar os benefícios daquela droga. Pode ser também divulgar informações negativas a respeito de outros remédios. Divulgar informações negativas a respeito de dietas e exercícios. E não está mencionando o remédio da empresa com a qual tem relações. O que muita gente não sabe e é muito importante é que a promoção de um remédio às vezes começa dez anos antes dele chegar ao mercado. Essa droga pode nem ter sido testada em humanos ainda, mas a empresa já está tentando plantar a semente na cabeça dos médicos de que a doença é um grande problema, que não é brincadeira. Isso começa anos antes. Pessoas são pagas para falar sobre isso. Quando a droga chega ao mercado você diz “graças a Deus surgiu um remédio para essa doença incurável da qual ouço falar há anos!”.

Viomundo – Por que a população em geral e os médicos, em particular, caem nessa armadilha tão facilmente e com tanta frequência?

AFB – Olha, é mais difícil enganar a população do que os médicos. É muito fácil enganar os médicos. Por vários motivos. Ao menos nos EUA, os médicos, em geral, vêm das classes mais altas da sociedade. Nunca venderam nada. Não têm vendedores na família. Não têm familiaridade com técnica de vendas. Às vezes conversamos com estudantes que têm vendedores na família e eles identificam claramente as técnicas de vendas. Os médicos não reconhecem. Não apenas vêm das classes mais altas, mas também são ingênuos. Aparentemente, nos Estados Unidos, e não sei se isso se aplica também ao Brasil, os médicos são mais suscetíveis a golpes financeiros. Eles são inteligentes. São muito bons nas provas de múltipla escolha. Mas não têm esperteza. São crédulos. Para mim foi muito interessante descobrir isso.

Viomundo – Isso não é apenas uma maneira de desculpá-los facilmente? Eles não deveriam ter mais responsabilidade sobre o que estão fazendo?

AFB – Mas eles não são expostos… Ok, nós fazemos uma apresentação chamada “Porque o almoço é importante” e trabalhamos nela com muito cuidado. Usamos psicologia social para ajudar os médicos a perceber esses truques. Uma das coisas que fizemos na apresentação foi, numa das primeiras vezes que a testamos, espalhei pessoas na plateia para anotar os comentários que os médicos faziam. Pegamos os comentários mais comuns e transformamos em slides. Depois usamos esses slides com outras plateias e teve um efeito impressionante. Um deles, por exemplo, dizia: “Você está errado, os representantes das indústrias farmacêuticas são meus amigos!” ou “eu sou muito inteligente para ser comprado por uma fatia de pizza e você está sugerindo isso!” Pusemos esses comentários nos slides e depois explicamos porque estavam errados. Os médicos ficaram chocados. Realmente chocados! Porque mostramos o que estavam pensando. Foi muito eficaz. As pessoas saíram das nossas apresentações jurando que jamais receberiam um representante da indústria novamente. Nunca iriam a um jantar pago pela indústria novamente. Ninguém gosta de ser enganado e quando você descobre que está sendo enganado você fica com raiva. E eles não estavam com raiva de nós e sim dos fabricantes de remédios. A grande maioria dos médicos quer fazer o melhor para seus pacientes. Existem alguns que fazem qualquer coisa por dinheiro. Mas eles são a minoria. A maioria quer fazer o melhor para os pacientes. Mas eles não se dão conta de que as fontes das informações que recebem são contaminadas, que estão sendo manipulados pela indústria de diversas maneiras. Que a indústria controla a informação sobre remédios apresentados em encontros médicos, em publicações médicas, em toda fonte de informação da qual eles dependem. E não gostam quando descobrem isso.

Viomundo – Como é possível mudar tudo isso se a indústria controla a pesquisa e o desenvolvimento de novos remédios, os testes em humanos, tem um dos maiores lobbies no Congresso e assim controla as leis escritas a respeito dela. Como escapar dessa situação?

AFB – Acho que é preciso promover mudanças em várias frentes. Algumas coisas mudaram um bocado, nos EUA, nos últimos cinco a dez anos. Ainda existe muito a fazer, mas acho que boa parte é expor os problemas. Trabalhos como o da ProPublica divulgando na internet os pagamentos para médicos, de forma simples e acessível. A divulgação obrigatória [do que os médicos recebem da indústria] é importante. Mas não é suficiente. Algumas mudanças tem que vir da profissão médica mesmo. Ela tem que recusar a relação com a indústria em nível individual ou no nível das sociedades médicas que aceitam dinheiro da indústria. As sociedades médicas têm que parar de receber dinheiro. Os médicos têm que recusar presentes e temos que tirar todas as pessoas que tenham qualquer conflito de interesse com a indústria farmacêutica dos órgãos decisórios sobre riscos e benefícios de remédios. Tem que haver reformas legislativas também. Você mencionou a pesquisa, que é muito importante. Nos EUA, há 30 anos, o Instituto Nacional de Saúde financiava 70% de todas as pesquisas biomédicas. Agora, é a indústria que financia 70% das pesquisas biomédicas. Isso é um problema. Precisamos de mais financiamento do governo. Testes financiados pelo governo às vezes descobrem que remédios antigos são melhores do que os novos. A indústria nunca vai financiar esse tipo de estudo. A indústria financia vários estudos e só publica aqueles dos quais gosta, o que faz sentido de um ponto de vista de negócios.

Viomundo – Sim. Mas não faz o menor sentido para a minha saúde.

AFB – Exato. Existe um movimento internacional para obrigar as empresas a divulgarem as informações de testes em humanos. Se não publicarem, têm que disponibilizar os dados para que outros pesquisadores possam publicá-los, o que é ótimo! Isso vem do ativismo da comunidade da saúde. Mas algo tem que ser feito pela comunidade médica. Quando vamos à comunidade médica com nossas apresentações, quando explicamos a eles, em geral reagem bem. Eles vão eliminar essas relações se acharem que são ruins para os pacientes. Então, parte da solução é a educação e também divulgação obrigatória, exposição, legislação, regulamentação… são várias frentes.

terça-feira, setembro 10, 2013

A bilionária indústria da educação médica continuada

Recebi material que gostei e divulgo. Apesar de ser de 2009, era novo para mim que tenho por hábito procurar textos e opiniões sobre o tema, e continua bastante atual. Trata de mais uma das formas pelas quais a indústria impacta a prática médica: financiamento de atividades de educação continuada.

sábado, setembro 07, 2013

Relato de nutricionista sobre o XII Congresso Nacional da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN)

Sou uma nutricionista recém-formada. Durante a graduação, escutei vários relatos sobre o Congresso Nacional da SBAN. Mas, por incrível que pareça, a minha primeira experiência só aconteceu este ano – depois que eu já estava com meu diploma na mão. Como eu tinha condições e curiosidade, resolvi ir para o tal do congresso que a Coca-Cola patrocinava.

Eu ouvi vários alertas quando mencionei minha viagem e já cheguei ao evento bem desconfiada, mas, acredite, o Congresso da SBAN conseguiu me surpreender – negativamente.

Stands lindos, enormes e modernos da Coca-Cola (é claro!), da Herbalife, da SupraSoy, da Nestlé, da Danone. Se alguém tivesse me contado eu não acreditaria, mas eu vi com meus próprios olhos: distribuição gratuita de shakes para serem substituídos pelas refeições principais e um freezer liberado com os produtos da Coca-cola.

Além de todo esse absurdo, eu tive o desprazer de assistir a palestras financiadas por essas indústrias, nas quais os seus produtos eram enaltecidos e amplamente elogiados, respaldados por pesquisas, projetos e grandes nomes.

E, pior do que tudo isso, eu vi nutricionistas mais do que orgulhosos por terem organizado, participado e realizado esse belíssimo evento.

Desde o último semestre da faculdade tenho tido excelentes experiências em relação à minha profissão. Desenvolvi o meu senso crítico e aprendi a enxergar a Nutrição sob uma perspectiva bem diferente daquela que a Universidade insistia em nos ensinar.

Por isso, me peguei diversas vezes me perguntando durante este evento… E se eu não tivesse tido essas experiências, eu teria esse olhar crítico em relação a este Congresso? Fiquei sinceramente preocupada quando vi estudantes do 2º, 3º semestre. Pode ser que tudo tenha sido absorvido por eles ou pode ser (eu espero!) que não.

De tudo, fica o meu relato e minha reflexão. Afinal, pelo que, nós, nutricionistas, lutamos? Não somos nutricionistas sociais ou clínicos ou de produção… Somos nutricionistas. E precisamos nos unir para lutar por um mundo com uma alimentação adequada para todos. Todos.
*Bruna Nunes é nutricionista e atua no Núcleo de Segurança Alimentar e Nutricional do Centro-Oeste (NUSAN/CO) e no Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (OPSAN/UnB). Originalmente publicado em http://propaganut.wordpress.com.

domingo, setembro 01, 2013

Ex-dirigente da ANVISA acusado de favorecer laboratório farmacêutico

O ministro do Supremo Luís Roberto Barroso autorizou a abertura de inquérito contra o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, por suspeita de crimes contra a administração pública. A decisão foi tomada a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), com base em dados da Operação Panaceia, da Polícia Civil e do Ministério Público de de Minas, que apurou indícios de que o governador recebeu dinheiro de um laboratório com interesses na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da qual foi diretor entre 2007 e 2010.

As informações foram reveladas pelo jornal O Estado de S. Paulo em reportagens publicadas no ano passado, o que levou a PGR a abrir procedimento sobre o caso. Na operação, a polícia mineira apreendeu agenda com registros de contabilidade da diretoria do grupo farmacêutico Hipolabor. Numa das páginas, referente a 24 de maio de 2010, constava a anotação "Agnelo", ao lado de "50.000". Em outra, referente ao dia 30 do mesmo mês, mais uma inscrição, aparentemente abreviada: "Agnelo: 50".

Grampos da operação revelaram indícios de que assessores do governador eram acionados para destravar pleitos do laboratório na Anvisa. Ouvido pelo Grupo Estado no ano passado, Francisco Borges, representante do Hipolabor na Anvisa que foi assessor de Agnelo quando deputado federal, afirmou que as anotações na agenda referiam-se a recursos para campanha, mas alegou que as doações não foram feitas.

Em seu mandato na agência, Agnelo assinou ao menos oito resoluções que beneficiaram as três empresas do grupo Hipolabor. Concedeu certificados de boas práticas de fabricação, exigidos para o registro e comercialização de medicamentos, além da participação dos laboratórios em licitações. O governador responde a outros inquéritos, que apuram sua participação em irregularidades na Anvisa e quando chefiou o Ministério do Esporte.

No despacho que autorizou o inquérito, o ministro Barroso decretou sigilo das investigações, por conterem escutas telefônicas, e autorizou diligências da Polícia Federal no caso. Também será apurado o envolvimento do deputado federal Fábio Ramalho, suspeito de receber vantagens do laboratório em troca de intermediação de interesses na Anvisa, como revelou o jornal.

O advogado de Agnelo, Luís Carlos Alcoforado, informou que "todos os atos, procedimentos e comportamentos dele como diretor da Anvisa foram submetidos aos órgãos internos de controle do órgão, à Controladoria-Geral da União e ao Tribunal de Contas da União, com a aprovação de sua conduta sem qualquer ressalva ou censura". O deputado não foi localizado.

Fábio Fabrini, do 

sábado, agosto 24, 2013

O Estranho Mundo do Overdiagnosis

Neste mês, o ex-presidente americano George W. Bush fez um teste de esforço, recebeu o diagnóstico de doença coronariana, e foi submetido a implante de stent em uma das artérias de seu coração. Na alta hospitalar, saiu acreditando que se beneficiou, porém mal sabe ele que sofreu do que a literatura médica internacional denomina overdiagnosis.

Overdiagnosis é um diagnóstico verdadeiro, porém desnecessário, com maior potencial de causar danos do que benefícios. Este fenômeno decorre da cultura do check-up, propagada pelo lobby em prol do excesso de exames em pessoas saudáveis. Em contraposição, o pensamento médico-científico propõe que a realização de exames se justifique pela existência de um benefício clínico advindo do diagnóstico. E não pela falsa perspectiva de proteção gerada pelo exame. Em pessoas saudáveis, assintomáticas, há exames que devem e outros que não devem ser realizados.

O senso comum sugere que o “desentupimento” da artéria de Bush foi benéfico. No entanto, isto vai de encontro à totalidade das evidências científicas de qualidade (COURAGE, BARI 2D, FAME-II): no paciente estável, “desentupimentos” não previnem morte cardiovascular, nem infarto. Isto ocorre porque a intervenção é feita na placa de gordura que mais impressiona visualmente, sendo que o infarto pode decorrer de qualquer das inúmeras placas invisíveis que residem em todo leito coronário. O que previne infarto é o controle dos fatores de risco. Principalmente controle do colesterol elevado, da hipertensão arterial e tabagismo. Este deve ser o verdadeiro enfoque preventivo.

O benefício do procedimento que Bush recebeu é útil para controlas dos sintomas de angina. Porém Bush não pode desfrutar deste benefício, pois não sente nada, tendo recentemente pedalado 30 milhas em um evento que homenageou veteranos da guerra do Iraque. Desfrutou, isto sim, do estresse psicológico do internamento, do desconforto de uma intervenção invasiva, da necessidade de uso prolongado de drogas antiplaquetárias, além do alto custo de seu procedimento.

Outra exemplo de overdiagnosis é o rastreamento indiscriminado de alguns cânceres em pessoas assintomáticas. Por exemplo, a realização anual do exame de PSA para pesquisa de câncer de próstata em homens assintomáticos. Embora câncer de próstata em alguns casos possa ser fatal, está provado cientificamente que fazer PSA de rotina não reduz probabilidade de morte por esta doença. Isto porque na prática, a detecção de cânceres precoces e localizados não necessariamente previne cânceres avançados, como sugere o senso comum. Em contrapartida, a cada 1000 homens que realizam PSA, 200 sofrem biópsias desnecessárias, 29 terminam impotentes e 18 com incontinência urinária devido a previsíveis efeitos advindos do tratamento resultante do overdiagnosis. Por este motivo, no ano passado a US Prevention Task Force (órgão americano que recomenda exames preventivos) contraindicou o uso de PSA em homens assintomáticos. Paradoxalmente, PSA continua sendo um dos mais populares exames em nossa prática médica. Isto não quer dizer que a pesquisa do câncer de próstata e seu tratamento cirúrgico não esteja indicada em certos casos, principalmente em pacientes com sintomas. O overdiagnosis se refere ao uso do exame em qualquer pessoa, independente de seus fatores de risco ou quadro clínico.

Esta discussão não propõe que passemos a negligenciar a medicina preventiva. Propõe que os exames certos sejam realizados nas pessoas certas. Ao solicitar um exame, tenhamos em mente que em última instância o objetivo é beneficiar o sujeito clinicamente. Há casos em que o rastreamento para câncer e a pesquisa da doença coronária devem ser realizados. Segundo, devemos lembrar que prevenir não é necessariamente fazer exames, há situações em que a prevenção vem de outras condutas. 

Quando presidente, George W. Bush diagnosticou que o Iraque representava uma ameaça ao mundo ocidental e promoveu uma guerra de benefícios questionáveis e eventos adversos evidentes. Dez anos se passaram e agora seus médicos fizeram o mesmo: diagnóstico desnecessário e tratamento fútil. Tudo não passa do estranho mundo do overdiagnosis.

* Artigo publicado no Jornal A Tarde, de Salvador, por Luis Correia

sexta-feira, agosto 16, 2013

Farmacêuticas versus médicos: existem limites para a interação?

Artigo originalmente publicado em Saúde Web.

Ministério Chinês de Segurança Pública emitiu comunicado, em julho deste ano, alegando que executivos da subsidiária local de uma grande multinacional farmacêutica tinham sido acusados de subornar médicos chineses por longos períodos. Esses executivos teriam persuadido os médicos a prescrever determinados medicamentos para pacientes. Na comunicação, a autoridade chinesa alega terem sido pagos aos médicos “valores volumosos”, os quais teriam sido operados por meio de agências de viagens, médicos, hospitais e outros profissionais, com o objetivo de “inaugurar canais de venda e aumentar receitas farmacêuticas”.

Enquanto desenvolvem-se procedimentos administrativos e processos judiciais, diversas questões devem ser feitas em conexão com essas acusações. Especificamente para o Brasil, uma dúvida precisa ser encaminhada: existem regras objetivas limitando os níveis de interação entre a indústria farmacêutica e os profissionais do setor médico?

Sim, elas existem e não são nada subjetivas. Não se questiona que a indústria farmacêutica necessita, constantemente, contatar profissionais de saúde de forma a alcançar, com a maior eficiência possível, os benefícios da pesquisa biomédica, bem como para evoluir do desenvolvimento de terapias dedicadas à prevenção, diagnóstico e tratamento de condições adversas de saúde.

Contudo, de forma a assegurar níveis de confiança e ética no relacionamento, bem como garantir o cumprimento das regras e padrões aplicáveis no Brasil (e não apenas aqueles existentes nos países sede das matrizes das companhias), as operações brasileiras deverão desenvolver, implantar e, especialmente, manter atualizadas políticas factíveis e realistas, que estabeleçam os objetivos, contextos e limites para a interação indústria/profissional da saúde.

Não obstante a ampla variedade de temas que poderiam constar em uma política de relacionamento, as diretrizes mais adequadas devem encaminhar, com atenção e foco local, os seguintes itens: oferta de presentes; pagamento de alimentação; distribuição de amostras; permissão de acesso de profissionais às instalações da companhia, incluindo para fins de pesquisas; patrocínio de atividades de educação médica continuada; participações endossáveis em palestras e autoria de artigos científicos.

Na dúvida sobre cobrir ou não um tópico em determinada política, é recomendável refletir sobre a possibilidade de que toda iniciativa que merece investimento e atenção do ponto de vista de vendas e de promoção, mereceria, igualmente, foco sob a ótica de compliance.

Especificamente, a premissa das interações com médicos deve ser aquela que expressamente estabeleça ao profissional que ele não terá qualquer obrigação de angariar, referenciar ou arregimentar pacientes para a indústria farmacêutica. E o profissional médico não deverá, de forma alguma, receber benefícios em decorrência desses atos, tampouco ser sancionado por não fazê-lo.

No que tange às particularidades brasileiras, cabe notar resoluções e determinações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e dos Conselhos Médicos que, em alguma medida, já estabelecem deveres de divulgação quanto à existência de relacionamento entre médicos e a indústria farmacêutica. Não se trata do Sunshine Act brasileiro, mas também não se pode advogar pela inexistência de um modelo local próprio.

Independentemente da sua complexidade, extensão ou estrutura, toda e qualquer política de compliance farmacêutico que pretenda ser eficiente deverá manter um simples e extremamente indelével objetivo: manter a cultura corporativa, em todos os seus níveis, que seja construtiva e diretamente permita aos profissionais médicos exercer livremente suas atividades, incluindo, especialmente, sua autonomia de adotar suas decisões médicas e profissionais sem ingerência da indústria.

Para os executivos com dificuldades em aceitar tal premissa ou mesmo implantá-las, fica uma previsão. Sua próxima atividade de interação com profissionais com médicos poderá estar ameaçada. Assim como a sua reputação e a da sua companhia.

* Benny Spiewak é advogado, sócio responsável pelas áreas de Defesa, Propriedade Intelectual, Life Sciences e Tecnologia do escritório ZCBS – Zancaner Costa, Bastos e Spiewak Advogados; especialista em Propriedade Intelectual e Tecnologia pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP); especialista em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia pelo The Franklin Pierce Law Center (Concord, EUA) e mestre em Direito da Propriedade Intelectual (LLM), formado pela The George Washington University. 

sábado, agosto 10, 2013

George W. Bush e seu stent no The Washington Post

Dois médicos criticaram publicamente a abordagem do paciente VIP: Leia na íntegra aqui.

Ex-presidente Bush era / é assintomático. Mais do que isto, é um atleta.

Recentemente pedalou cerca de 50km. Leia mais aqui

Impossível não lembrar do blog Medicina Baseada em Evidências...

Como deixar de comparar este VIP com o "Papai Noel" do cardiologista Luis Cláudio Correia [em referência à postagem Papai Noel precisa de check-up antes do Natal?]?!

Outros artigos de Correia sobre o tema:





Pena que este tipo de coisa abafa esforços como o de Correia ou dos médicos que escreveram no The Washington Post. Sem o mesmo alcance, vence de goleada a cultura do exagero e do desperdício.  

quinta-feira, agosto 08, 2013

A promiscuidade entre a indústria e a medicina: o exemplo da Nestlé e da Pediatria no Brasil

Reprodução de texto de Daniel Becker, médico pediatra

"Imaginem a cena: milhares de adultos fazendo filas para comer papinhas de bebê requentadas em réchauds de aço inox. Médicos se acotovelando para devorar leitinhos infantis açucarados e biscoitos de aveia e mel. Centenas de respeitáveis profissionais ansiosos para responder um joguinho de perguntas e ganhar bichinhos de pelúcia; jogando dadinhos gigantes para ganhar picolés de graça.

Estas cenas não pertencem a alguma comédia dos Trapalhões ou a um pesadelo de pais esgotados. São reais e colocam, de forma muito eloqüente – e caricatural, neste caso – uma faceta pouco conhecida da medicina: a relação entre indústria farmacêutica e médicos.

Existem muitas restrições que limitam a propaganda de remédios diretamente para o consumidor. Portanto, o médico, que prescreve a droga, acaba sendo o alvo preferencial da indústria. Há várias formas de cooptar a “opinião cientifica” de médicos. E os alvos mais valiosos são aqueles que se encontram em posição de influenciar decisões que gerem mais vendas – seja por influência no público diretamente, no governo, na mídia ou – muito importante – em outros médicos.

A indústria pode, por exemplo, financiar estudos “científicos” sobre seus produtos, mascarando ou alterando resultados; manipulando estatísticas e mesmo, estratégia mais comum, trazendo a público apenas os que deram resultados favoráveis (os que mostram que o remédio não funcionou vão para a gaveta). Médicos recebem dinheiro (de forma direta, mas velada) da indústrias para promover direta ou indiretamente uma droga; médicos são seduzidos por favores como passagens para congresso, viagens e estadias pagas em hotéis caros, aparelhos de todo tipo, comissões, pagamentos para publicar artigos, dar palestras que mostram como é bom tal ou tal remédio… enfim, são muitas as estratégias.

Uma das mais criativas é a da Nestlé Brasil. A maior indústria de alimentos infantis do planeta que escolheu como estratégia – extremamente inteligente – influenciar nossos pediatras. Ora, pediatras influenciam mães e pais, com autoridade de quem cuida da saúde de nossos filhos! Quer melhor que isso para vender? 

Infelizmente, em nosso pais e em muitos outros, o desmame precoce ainda é uma triste realidade. E muitas vezes ocorre devido ao conselho de profissionais de saúde, entre eles, pediatras e obstetras. Maternidades são conhecidas pela prática de oferecer complementos para recém nascidos, muitas vezes desnecessariamente, à revelia das famílias. A Sociedade Brasileira de Pediatria faz um belo trabalho de defesa e promoção do Aleitamento Materno – recentemente, por exemplo, pressionando pela aprovação da licença de 6 meses. Mas por outro lado, tudo, literalmente tudo que a SBP faz é patrocinado pela Nestlé. A indústria colou de tal forma a sua marca à SBP que chega a ser bizarro. Todas as publicações da Sociedade de Pediatria vem com o logo “Nestlé Nutrition”. Cursos, atualizações, manuais, correspondência… tudo. É muita simpatia. A Nestlé está de tal maneira identificada com a pediatria brasileira, que causa fascínio em todos os que vem a conhecer este “case” de marketing. E é muita ambigüidade: por um lado lutar pela amamentação e por outro lado se apoiar inteiramente na indústria que historicamente foi a pior inimiga do leite materno, e cujos produtos, que deveriam ser uma espécie de reserva técnica para casos excepcionais, são propagandeados diariamente para médicos (aliás, os de outras indústrias também).

E aí… semana passada passei um dia no Curso Nestlé de Atualização em Pediatria, oferecido (sem custos) anualmente pela empresa e freqüentado por milhares de pediatras de todo o pais. A edição 2012 foi no Rio, e fui lá para assistir uma aula específica.

O que vi era difícil de acreditar. Um pátio gigantesco, no Riocentro. Milhares de médicos, a maior parte acima de seus 40 anos, se acotovelavam para participar das promoções da Nestlé. Eram “quizes” de perguntas (quase todas relacionadas direta ou indiretamente a produtos da empresa) para ganhar… bichinhos de pelúcia; joguinhos da memória infantis sobre as papinhas Nestlé, para ganhar pingentinhos; joguinhos de dados gigantes para ganhar picolés; fotos com logo de iogurte para colocar no Facebook; videogames com símbolos de produtos para ganhar mais brindes infantis. Nos stands servia-se chocolatinhos, leitinhos, Ninho Soleil, Chambinhos, biscoitos, sorvetinhos e pasmem: papinhas Nestlé. Em réchauds de aço inox, servidos por mocinhas em traje de chef. Em todas as estações, centenas de pediatras se acotovelavam para participar, provar papinhas e ganhar brindes infantis. Isso em meio a propagandas gigantescas de todos os produtos da empresa, em especial os leites para bebês.

Ora, uma coisa é propaganda lúdica, bem humorada. Mas o que vi ali foi um show de infantilização simplesmente inacreditável. Uma empresa se propondo a tratar pediatras como crianças e pediatras assumindo esse papel de forma caricatural. Assim fica muito fácil imaginar como a Nestlé se inscreve no imaginário destes profissionais. Como eles de forma inconsciente transformam a empresa numa “Grande Mãe” que os ama, e portanto, merece amor filial. Uma mistura genial de marketing e psicanálise, que para alguém que conseguia ver este cenário um pouco “do lado de fora”, parecia um verdadeiro show de horror."

O autor criou espaço no Facebook para ilustrar um pouco o que descreveu:
http://www.facebook.com/media/set/?set=a.331214660302932.73078.150013085089758&type=3
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