por Cristiane Segatto, ÉpocaÉ cada vez mais difícil sair de um consultório sem a prescrição de um, dois ou três remédios. Você não tem sintoma algum ou apenas queixas difusas como cansaço, estresse, noites mal dormidas – mais ou menos como 100% das pessoas que trabalham. Procura o médico só para saber se está tudo bem e fazer aquele checkup básico. Isso não é cuidar da saúde?
Seria se os princípios da medicina não tivessem sido tão desvirtuados nas últimas décadas. Em vez de zelar pela saúde, ela tem se ocupado de vender doença. É uma praga mundial. Nos Estados Unidos, os críticos das relações inadequadas entre a indústria farmacêutica e boa parte dos médicos chamam essa prática de disease-mongering. É o velho truque de criar problema para vender solução.
Tudo começa com o pedido exagerado de exames (overtesting, em inglês). É uma batelada tão grande e desnecessária que algum parâmetro minimamente fora do padrão o médico vai encontrar. Quem procura acha, não é mesmo? Isso já aconteceu comigo mais de uma vez. Tive a sensação de quem leva um carro em bom estado para uma revisão preventiva e volta para casa arrasado, achando que é dono de uma lata velha.
O que fiz? Desconfiei do desfile de representantes da indústria farmacêutica na sala de espera, pesquisei a coerência da indicação dos remédios e, para não fazer besteira, consultei meu médico de confiança. Ele me tranquilizou e me fez ver que nenhuma daquelas alterações era relevante. Voltei para casa sem doença imaginária e sem um rombo na carteira.
A prescrição de remédios para corrigir desvios do padrão que não necessariamente provocam ou vão provocar doença é conhecida, em inglês, como overtreatment. É o terceiro flagelo que afeta os pacientes de classe média alta – aqueles que têm acesso à medicina, mas não exatamente à saúde.
Um bom exemplo disso é a indústria da testosterona, tema da provocativa reportagem de capa da
Revista TIME da semana passada. O mercado do hormônio masculino movimenta US$ 2 bilhões nos EUA. As prescrições cresceram de 2,9 milhões em 2007 para 7,5 milhões em 2013.
No Brasil, a tendência é a mesma. Segundo a Anvisa, as vendas de produtos que contêm testosterona (em cápsula ou injetável) aumentaram 55% entre 2004 e 2012. Isso sem contar o gel de testosterona produzido por farmácias de manipulação. Essa é uma indústria construída sobre a insegurança provocada pela consciência da passagem do tempo.
Desde que o mundo é mundo, homens e mulheres fazem loucuras para conservar a beleza e a energia da juventude. Na Roma Antiga, impotência sexual se combatia com alho-poró e água de aspargos cozidos. Coentro fresco misturado com alho e vinho era considerado o melhor dos afrodisíacos. Na Idade Média, o frade e filósofo alemão Albertus Magnus fez fama com uma receita que prometia devolver aos homens desesperados a rigidez dos bons tempos. O segredo era assar o pênis de um lobo, cortá-lo em pedaços pequenos e mastigar devagarinho.
Na sociedade pós-Viagra, garantir as ereções já não basta. Os homens querem uma solução mágica capaz de promover uma revigorada geral. Um combo de vitalidade, disposição, bom humor, músculos, barriga chapada... O elixir da juventude é um desejo ancestral que a indústria se preparou para atender. No século XXI, ele se chama reposição de testosterona.
Essa terapia só é aprovada pelas agências que controlam medicamentos (FDA, nos Estados Unidos e Anvisa, no Brasil) para o tratamento de homens que não conseguem produzir testosterona naturalmente e, por isso, sofrem de doenças como depressão, perda de massa óssea, perda de libido, disfunção erétil, alterações cardiovasculares. Nesses casos, a reposição hormonal é muito importante.
A grande maioria da população masculina não precisa disso. A andropausa, queda na produção de testosterona depois dos 50 anos, é considerada uma doença que afeta de 5 a 10% dos homens. Enquanto a menopausa é uma alteração fisiológica, um fenômeno natural pelo qual todas as mulheres passam, a andropausa é patológica. É doença, de fato. Como tal, precisa ser tratada.
Os outros 90% dos homens chegarão à velhice produzindo testosterona, com a libido preservada e sem nenhum sintoma de andropausa. Mesmo que tenham dificuldades de ereção (Viagra e assemelhados estão aí para isso), desejarão a mulher do vizinho até o último suspiro.
Se apenas um pequeno grupo de pacientes precisa fazer reposição hormonal, o que explica o boom da testosterona que o Brasil e outros países vivem? Ele é explicado por outra prática corriqueira da indústria farmacêutica: a de promover medicamentos para usos ou públicos para os quais eles não são aprovados.
Olhe à sua volta e veja quantos quarentões trabalham demais, dormem pouco, são sedentários e reclamam da vida sexual. Se eles forem submetidos a uma dosagem de testosterona no sangue provavelmente descobrirão que os níveis do hormônio estão no limite do que é considerado normal ou, talvez, um pouco abaixo dele. É provável que saiam do consultório com uma prescrição de testosterona, mesmo sem ter sintoma de doença.
Isso é tratamento desnecessário. “Quando o homem tem uma pequena alteração nos níveis de testosterona no sangue e nenhum sintoma não se deve prescrever a reposição hormonal”, diz o urologista Daher Chade, do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. “A conduta recomendada é apenas aguardar para ver se surge algum sintoma”.
O problema da maioria dos quarentões mal cuidados não é incapacidade de produzir testosterona – e sim estilo de vida errado. Recentemente, uma publicação da Universidade Harvard dedicada à saúde masculina lançou a questão: “Você já pensou em outras razões que possam estar provocando fadiga, queda da libido e outros problemas?”. E concluiu: “Você tem uma alimentação nutritiva? Faz atividade física regularmente? Dorme bem? Cuide disso tudo antes de procurar a reposição hormonal”.
Quanto mais sexo uma pessoa faz, mais testosterona ela produz naturalmente. Conserte a vida, vá para casa mais cedo, faça mais sexo e dê uma chance para a natureza. O mesmo vale para as mulheres. Nos últimos anos, virou moda entre os ginecologistas brasileiros prescrever gel de testosterona também para elas.
O esquema é o mesmo: pedem a dosagem do hormônio, verificam que ele está no limite e já indicam a farmácia de manipulação de “confiança”. Mesmo que a paciente não tenha queixa alguma, prometem um “up” na libido, músculos torneados, barriga chapada, energia e disposição. E, quase sempre, arrematam com o argumento que, para algumas mulheres, pode ser arrebatador. Para outras, é assustador. “Viu como a paciente que saiu daqui agora está bem?”. E aí você se lembra de ter visto uma mulher de 60 anos, espremida numa minissaia e, aparentemente, com uma enorme dificuldade de aceitar que a juventude passou.
Cada um vive como bem entende, mas é desejável que toda escolha seja baseada em informação e consciência dos riscos. O uso de testosterona por mulheres não é aprovado pelas autoridades sanitárias. A exceção é o uso hospitalar, quando a paciente sobre de graves alterações metabólicas. “Não faz sentido prescrever testosterona para mulheres”, diz o médico Chade. “Se a mulher produz pouca testosterona e opta pela reposição, a produção natural do hormônio vai diminuir ainda mais se ela interromper o uso do produto”, afirma.
Mulheres que usam gel de testosterona costumam relatar que se sentem mais dispostas, bonitas, com menos gordura corporal e mais energia sexual. Ajudam a propagar a reposição e a movimentar uma indústria bilionária.
Os riscos não são desprezíveis. Eles envolvem virilização. As mulheres podem ter acne, aparecimento de pelos no rosto, engrossamento da voz, crescimento do clitóris, queda de cabelo, retenção hídrica (que provoca inchaço) e alterações de comportamento, como aumento da agressividade. Se a dose for muito elevada, aumenta o risco de trombose, hepatite, aparecimento de cistos e tumores no fígado, entre outros problemas. Vale a pena?
No início do ano, a FDA anunciou o início de uma revisão dos dados de segurança da reposição de testosterona em homens. A decisão foi motivada por vários estudos segundo os quais certos homens correm risco mais elevado de ter infarto e derrame se fizerem reposição hormonal. E também por dezenas de processos judiciais de consumidores que alegam ter sofrido danos por causa da testosterona.
Alguns meses depois, a agência exigiu que os fabricantes alertassem os pacientes sobre o aumento do risco de possíveis coágulos nas veias. Em setembro, uma comissão de especialistas convocada pela agência discutirá as evidências disponíveis sobre benefícios e riscos da reposição. Muita discussão vem por aí. Enquanto isso, prefiro a sábia provocação lançada por muitos dos médicos que são mais que meros prescritores de medicamentos. “Você tem saúde para tanto remédio?”.